(Disclaimer: Este é um artigo sobre um aspecto específico da União Soviética sob o regime de Stálin. Não há intenção, por parte do autor, de sugerir qualquer tipo de associação ou paralelo com outro país e outra época. Qualquer semelhança porventura percebida terá sido mera coincidência: interpretações diferentes serão de responsabilidade exclusiva do leitor.)
Em 25 de fevereiro de 1927, entrou em vigor na União Soviética o Artigo 58 do Código Penal, no capítulo “Crimes contra o Estado”. Basicamente, ele autorizava o governo a jogar na prisão qualquer suspeito de atividades contra-revolucionárias. Ao longo dos anos seguintes, à medida que Stálin se consolidava no poder e instituía o terror e a fome como políticas públicas, o Artigo 58 foi sendo aprimorado, ganhando diversos sub-artigos que expandiram ainda mais o seu alcance.
Em 1934, por exemplo, o dispositivo legal incorporou formalmente o conceito de “inimigo dos trabalhadores”, ou “inimigo do povo”, tipificação acrescentada a outras, como “traidor” e “sabotador”.
Por serem carregadas de peso moral mas, ao mesmo tempo, subjetivas e sujeitas a interpretações flexíveis, estas expressões serviram (e deram contornos legais) à perseguição, à prisão e à execução de uma multidão de cidadãos inocentes que só queriam exercer seu direito de criticar o governo.
Ora, eles não tinham entendido que esse direito não existia. Aprenderam da forma mais dura que, em um Estado arbitrário, não há crime pior que denunciar a arbitrariedade do Estado. A lei se torna, meramente, uma ferramenta de ação política.
Talvez a vítima mais famosa do Artigo 58 tenha sido o dissidente Alexander Soljenitsin. Nascido em 1918, um ano após a revolução, quando jovem e universitário ele foi um entusiasta do experimento comunista e da teoria marxista-leninista. Condecorado por bravura na Segunda Guerra, quando ajudou o Exército Vermelho a derrotar os nazistas, era um comunista exemplar, típico da sua geração.
O Artigo 58 mostrou que, em um Estado arbitrário, não há crime pior que denunciar a arbitrariedade do Estado
Até que, em 1945, Soljenitsin cometeu o crime de criticar aspectos da política de Stalin em cartas particulares a um primo. A correspondência foi interceptada. Enquadrado no Artigo 58, ele foi condenado a passar oito anos em um campo de concentração na Sibéria e a mais três anos de isolamento no Cazaquistão.
Mais tarde, Soljenitsin relataria essas experiências no romance “Um dia na vida de Ivan Denisovich” (1962) e, principalmente, no livro “Arquipélago Gulag” (1973), o principal registro já escrito sobre os horrores a que eram submetidos os presos políticos na União Soviética – da fome a variadas formas de tortura física e psicológica, em condições climáticas extremas.
As penas impostas pelo Artigo 58 eram longas (até 25 anos de prisão) e, na prática, indefinidamente prorrogáveis. Nos casos mais graves, pena de morte com um tiro na cabeça ou no peito.
Aqueles que sobreviviam à alta taxa de mortalidade nos campos (resultante da combinação de tortura, trabalho pesado, isolamento, frio intenso, alimentação mínima e condições sanitárias inexistentes) e conseguiam recuperar a liberdade continuavam privados de direitos políticos, ou mesmo impedidos de morar em grandes centros. Tinham, além disso, todas as suas propriedades confiscadas pelo Estado.
Crimes mais brandos também eram punidos com severidade. Não relatar uma suposta traição de um terceiro (um vizinho ou um colega de trabalho, por exemplo) era passível de seis meses de prisão. Todo cidadão era obrigado a ficar vigilante e denunciar qualquer pessoa suspeita que conhecesse.
Isso levou, como era previsível, à formação de um exército de informantes voluntários: todos viviam com medo, e ninguém confiava em ninguém. O historiador Orlando Figes escreveu um livro de mais de 600 páginas retratando esse ambiente de pavor e silêncio compulsório, "Sussurros".
O próprio Soljenitsin conta, entre outros episódios, que um encanador que desligava o rádio do seu quarto quando transmitiam discursos de Stalin foi condenado a 20 anos de prisão, após ser denunciado por um vizinho.
“Não havia nenhum pensamento, ação ou falta de ação sob os céus que não pudesse ser punido pela mão pesada do Artigo 58”, resumiu Soljenitsin. E era este, justamente, o gênio do sistema: qualquer pessoa podia ser enquadrada em alguma das ramificações dialéticas do dispositivo. Era praticamente impossível viver sem violá-lo.
Conversas entre amigos ou uma carta privada bastavam para fundamentar a acusação de agitação e propaganda anti-soviética. Possuir literatura proibida também dava cadeia.
Faltar ou chegar atrasado ao trabalho, por sua vez, se enquadrava no sub-artigo referente à “sabotagem das estruturas produtivas do regime”. Até crianças podiam ser – e foram – punidas. Aliás, a educação religiosa infantil também era classificada como atividade contra-revolucionária.
Outras vítimas do Artigo 58 foram os prisioneiros de guerra russos que voltavam da Alemanha, condenados por traição, por contato com burgueses estrangeiros ou, simplesmente, por não terem lutado até a morte (não lutar até a morte era uma atividade anti-soviética). Em caso de fuga do acusado, as sanções recairiam sobre a sua família.
Não parava aí. Como a subjetividade na análise do crime era deliberada, o comissário do partido responsável pela instrução do processo julgava com base não em definições objetivas da lei, não em provas documentais e testemunhos confiáveis, mas no seu “sentido revolucionário do Direito” e na sua “intuição como membro do partido”.
Na ausência de provas, pessoas podiam ser enquadradas não apenas por atos, mas também pela interpretação e presunção das suas intenções: “Nós não fazemos diferenciação entre a intenção e o próprio delito, e nisto reside a superioridade da legislação soviética sobre a legislação burguesa”, escreveu um jurista russo da época, em uma exegese do Artigo 58.
É nesse contexto que deve ser entendida a declaração feita mais tarde pelo infame Lavrenti Beria, chefe da polícia secreta stalinista: “Mostre-me o homem, e eu direi qual foi o crime”.
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