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Em alguma medida, talvez tenha sido sempre assim, mas acho que este fenômeno está cada vez mais intenso: sobretudo na política, mas não apenas nela, o que determina a evolução dos acontecimentos não são os fatos em si, mas a percepção da realidade. Nesta equação, as narrativas têm um peso desproporcionalmente maior que a verdade.
Raramente percepções e narrativas coincidem integralmente com os fatos. Mas mesmo as percepções mais distorcidas, enviesadas e dissociadas do mundo real podem, quando generalizadas, influenciar de maneira decisiva o futuro de uma nação.
No artigo “À procura da tempestade perfeita”, elenquei os cinco atores cujos comportamentos, combinados, costumam determinar o desenlace das crises políticas no Brasil, desde a redemocratização: o mercado, as ruas, classe política, o Poder Judiciário e a grande mídia.
Também mostrei como, nas crises que resultaram no impeachment de dois presidentes – Fernando Collor, em 1991, e Dilma Rousseff, em 2016 – a combinação da deterioração da economia com o descrédito do governo estabeleceu um raro consenso entre os cinco atores, levando à mobilização, à ruptura e, finalmente, à ascensão ao poder dos vices Itamar Franco e Michel Temer.
Por fim, demonstrei como, por forte que tenha sido o empenho de determinados grupos, não foi possível abreviar os mandatos de Temer e Bolsonaro. Não houve tempestade perfeita naquelas duas ocasiões, porque faltou o consenso necessário: basta que um ou dois dos cinco atores divirjam para que um governo se mantenha no poder, ainda que prejudicado pela sabotagem dos demais.
Pois bem, apenas 21 dias após o segundo turno de uma eleição muito apertada e contestada, a percepção já é de crise. Fato é que, nestas três semanas, a atmosfera reinante é muito diferente do otimismo das três semanas subsequentes à eleição de 2002 - em parte porque o discurso do presidente eleito também é muito diferente daquele de 20 anos atrás. A apreensão é crescente, e não há lua-de-mel, ao contrário: todo mundo parece empenhado em esticar ainda mais a corda.
Convém ficar atento aos sinais, até porque nenhum dos cinco atores elencados é 100% fiel: todos podem mudar radicalmente de ideia, a depender do vento, sobretudo em um ambiente de tempestade.
É ilusão perigosa contar com apoios incondicionais. E fato é que o comportamento de alguns dos atores já está mudando. Se não, vejamos:
“Ufa, tiramos Bolsonaro!” parece ter sido a reação imediata de muita gente ao resultado da eleição. Mas a que preço? E agora?
O mercado reage muito mal às sinalizações emitidas pelo presidente eleito. Isso se verifica não apenas na alta do dólar e na queda da Bolsa, mas também nas críticas cada vez mais abertas de economistas, banqueiros e empresários que apoiaram o candidato eleito na esperança de que haveria racionalidade e moderação, sobretudo na condução da economia.
Pior, o discurso de “guerra ao mercado” pode ter muito rapidamente consequências nefastas na vida concreta das pessoas, especialmente entre os mais pobres. Porque de nada adiantará garantir um auxílio de R$ 600 para a população mais carente em um ambiente de instabilidade econômica e disparada da inflação, dos juros e do desemprego, cenário ainda hipotético, mas perfeitamente possível em um prazo relativamente curto.
Sobre as ruas, nem seria necessário falar. O novo governo ainda nem tomou posse, mas a insatisfação, a indignação e a revolta não param de crescer. Para piorar, o Judiciário tomou a decisão de jogar gasolina no incêndio e confrontar os caminhoneiros, uma categoria que tem o poder de parar o país.
Incontestavelmente, hoje é a direita quem demonstra o poder de mobilização popular que outrora era monopólio da esquerda. Mesmo que esta primeira onda de protestos passe, e em algum momento vai passar, já ficou claro que a paciência da população será pequena: a insatisfação popular pode se tornar uma bomba-relógio, um barril de pólvora. Se a situação econômica se deteriorar, é fácil visualizar milhões de pessoas voltando às ruas.
Vale lembrar que o presidente eleito foi derrotado por margem relativamente ampla em três regiões do país: Sudeste, Sul e Centro-Oeste; perdeu por pequena margem na Região Norte; e só ganhou no Nordeste. Ou seja, em quatro das cinco regiões do país, a maioria votou contra ele e continuará contra – a não ser que ele faça um governo excelente e se mostre capaz de pacificar a sociedade, o que parece cada dia menos provável.
Por sua vez, por maleável e fisiológica que seja, a classe política tende a ouvir a voz do mercado e das ruas, e sempre é bom lembrar que o Congresso eleito em 2022 é majoritariamente conservador.
É claro que, em um ambiente de otimismo, com tudo dando certo, muitos senadores e deputados que se elegeram na aba de Bolsonaro mudariam rapidamente de lado, sem qualquer vergonha. Já em um ambiente de crise, a contabilidade de perdas e ganhos será outra.
Mas não é só isso. Há a percepção (sempre é bom frisar que percepções nem sempre correspondem aos fatos) de um ambiente de conflito e bateção de cabeça na inchada equipe de transição, e não apenas na área econômica.
Como os políticos que estão sendo escanteados dos debates reagirão a isso? Basta dizer que alguns deputados e senadores de peso que apoiaram o candidato vencedor – por exemplo, Tasso Jereissati – já estão atacando duramente a PEC de Transição (também conhecida como PEC da Gastança ou PEC do Rombo) e declarando voto contra.
Sobre o Poder Judiciário é mais prudente não opinar. Mas também ele, acreditem, pode mudar de lado em um cenário de crise acentuada.
Por fim, a grande mídia.
Ah, a grande mídia... Depois de quatro anos sabotando, fazendo campanha, batendo tambor e servindo de palanque, ela agora, sem qualquer cerimônia, como que passado o efeito de um encantamento ou de um feitiço, posa de isentona a até começa a criticar o governo eleito, antes mesmo da posse.
A militância aguerrida de alguns colunistas continua, é claro, mas o tom da cobertura já mudou, com editoriais em série cobrando responsabilidade do novo presidente. Estarão sentindo, talvez, a água bater na cintura?
“Ufa, tiramos Bolsonaro!” parece ter sido a reação imediata de muita gente ao resultado da eleição. Mas a que preço? E agora?
Fica a impressão de que, como milhões de eleitores, esses cinco atores escolheram seu candidato por aversão estética a Bolsonaro – e este também tem responsabilidade nisso, é importante dizer.
Mas, como para milhões de eleitores, e talvez para esses cinco atores, talvez a ficha tenha começado a cair a ficha de que as coisas sempre podem piorar. Causas têm consequências, e as consequências vêm depois.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima