| Foto: Luciano Trigo com ChatGPT
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Terminei de ler “Democracia Fake – A metamorfose da tirania no século 21”, do economista russo Sergei Guriev e do cientista político americano Daniel Treisman. Lançado em 2022, o livro analisa como regimes autoritários contemporâneos se diferenciam das ditaduras tradicionais, substituindo a repressão explícita e o terror pela manipulação de informações, pela censura seletiva e pela polarização deliberada da sociedade.

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Tudo isso resulta na fabricação de uma realidade paralela e muito pouco democrática, apesar da aparência de normalidade. As instituições continuam funcionando, mas embora continuem existindo eleições “livres e transparentes”, elas são desvirtuadas, servindo mais como uma fachada: “Em vez de cancelarem eleições, eles as manipulam; em vez de proibirem os meios de comunicação da oposição, eles os marginalizam; em vez de instalar um Gulag, eles impõem restrições ao Google”, afirmam os autores.

Os maiores ditadores do século passado, como Hitler, Stalin e Mao, governaram por meio de repressão brutal. Nas últimas décadas, contudo, a face da ditadura vem mudando, adquirindo uma face humana. Os novos autocratas têm como verdadeiros objetivos a tirania e o poder absoluto, mas, no discurso, se apresentam como virtuosos e defensores da democracia.

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Os autores citam como exemplos os casos da Venezuela, da Rússia e da Hungria, mas reconhecem que eles ainda convivem com ditaduras à moda antiga, baseadas no medo, como na Coreia do Norte e mesmo na China – esta marcada por uma sofisticada repressão tecnológica, da qual faz parte o sistema de crédito social.

Os precursores da democracia fake teriam sido Lee Kuan Yew, de Singapura, e Alberto Fujimori, do Peru, que compreenderam ser mais eficaz para a perpetuação no poder o uso de métodos não violentos de controle da população, praticando uma censura velada e usando instituições democráticas para minar a democracia.

Capa do livro "Democracia Fake: A metamorfose da tirania no século XXI", por Sergei Guriev e Daniel Treisman.| Foto: Reprodução/Editora Vestígio

As antigas ditaduras se transformaram, assim, em "autocracias informacionais", um autoritarismo light que mantém uma fachada de legalidade, legitimidade e pluralidade. Fabrica-se assim uma ilusão democrática, onde o que vale é a aparência: a falsificação de procedimentos democráticos prevalece sobre a democracia.  

Governo e sociedade passam a viver em um estado de dissonância cognitiva: a realidade perde relevância, pois tudo que importa é a narrativa. Daí a importância da participação da parceria da mídia e do controle das redes sociais no processo de manipulação da opinião pública: opiniões e notícias desfavoráveis ao governo são invariavelmente desqualificadas e rotuladas como desinformação.

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O fluxo das informações é controlado, de forma a promover líderes populistas e silenciar a oposição. Esta, por sua vez, é crescentemente estigmatizada, ridicularizada ou mesmo criminalizada. Dissemina-se, aos poucos, a ideia de que vale tudo em nome da defesa da democracia, inclusive censurar, perseguir e mandar prender.

Outra característica das democracias fake é o estímulo à polarização extrema, para enfraquecer o debate público e dividir a sociedade. Ao promover essa divisão, líderes autocráticos consolidam se poder, ao apresentarem os membros da oposição como inimigos da nação, enquanto se apresentam, eles próprios, como humildes e desinteressados servos do povo.

“Esse novo modelo é baseado em um insight brilhante”, escrevem os autores. “O objetivo central continua sendo o mesmo: monopolizar o poder político. Mas os tiranos de hoje percebem que, nas condições atuais, nem sempre a violência é necessária ou mesmo útil. Em vez de aterrorizar os cidadãos, um governante habilidoso pode controlá-los reformulando suas crenças acerca do mundo. Pode enganar as pessoas de modo que se conformem, e até mesmo para que aprovem seu regime com entusiasmo”.

É preciso fortalecer a democracia, dizem os governantes das democracias fake, enquanto, uma a uma, as liberdades vão sendo gradualmente suprimidas

Infelizmente, não falta quem apoie esses regimes, mesmo quando direitos humanos são abertamente violados, com a repressão de protestos, a prisão de manifestantes e a perseguição de opositores políticos; mesmo quando se recorre, como antigamente, ao uso da força contra a população, a restrições arbitrárias às mais rudimentares liberdades civis.

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Outro aspecto central da democracia fake é a manipulação do sistema eleitoral para garantir a permanência no poder. Eleições são realizadas regularmente, mas sempre de maneira a garantir o resultado favorável ao governo, seja por meio de campanhas desequilibradas ou de fraudes sutis.

Essas fraudes não estão mais focadas na apuração dos votos, mas na quebra de isonomia durante as campanhas eleitorais, na intimidação de opositores no tratamento desequilibrado dos candidatos, não somente por parte da mídia, mas também das próprias instituições supostamente responsáveis pela lisura do processo.

Por fim, para que uma democracia fake tenha êxito, é fundamental a parceria entre os poderes Executivo e Judiciário, esvaziando-se o papel do Legislativo. Na democracia real, a independência dos poderes estabelece uma rede de freios e contrapesos, que impede abusos. Já na democracia fake, o Judiciário e o Executivo se confundem, em uma relação de instrumentalização recíproca.

Nessa conveniente simbiose, um Poder depende do outro, um Poder serve aos interesses do outro; porque, da força e da sobrevivência de um Poder dependem a força e a sobrevivência do outro.

É claro que essa aliança sempre se justifica pela retórica da defesa da democracia e do Estado de Direito, contra inimigos internos ou externos. É preciso fortalecer a democracia, dizem os governantes das democracias fake, enquanto, uma a uma, as liberdades vão sendo gradualmente solapadas e suprimidas.

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Mas, como uma imensa parcela da população se recusa a cair no truque, o resultado inevitável é uma perigosa escalada de tensões. É o paradoxo da polarização deliberada: a partir de determinado ponto, ela se volta contra as mesmas instituições que teoricamente se tentava proteger e preservar.

Outo efeito colateral é a deterioração da confiança do povo no processo democrático: quando uma parcela relevante da população deixa de acreditar na democracia, abrem-se caminhos perigosos e imprevisíveis.

Resumindo: as características principais das democracias fake, portanto, são as seguintes:

  1. Incentivo à polarização política e à divisão da sociedade entre “nós” e “eles”;
  2. Manipulação das informações, inclusive dos indicadores econômicos, para produzir uma falsa sensação de normalidade e prosperidade;
  3. Demonização da imprensa independente e da oposição;
  4. Controle das redes sociais, para impor à sociedade uma narrativa hegemônica;
  5. Instrumentalização do Poder Judiciário e fragilização do Legislativo.

Ainda bem que nada disso acontece no Brasil.

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