Se o feminismo é um movimento que luta pela igualdade de direitos entre os sexos e combate abusos e violência contra mulheres, somos todos feministas. Em seu sentido original, o feminismo se fundamenta em um dever moral que é hoje um consenso: o reconhecimento de que todos são iguais. Dito de outra maneira: ninguém pode ser discriminado (nem privilegiado) pelo acaso de ter nascido homem ou mulher.
Esta premissa da igualdade de direitos já está presente em documentos da pré-História do feminismo, como os panfletos “Declaração dos direitos da mulher cidadã”, da francesa Olympe de Gouges (1791). e “Reinvindicação dos direitos das mulheres”, da inglesa Mary Wollstonecraft (1792), que contestavam a submissão das mulheres, os casamentos arranjados e a desigualdade no acesso à educação, entre outros temas.
A mesma premissa marcou a “primeira onda” formal do movimento feminista, iniciada no final do século 19, quando mulheres se organizaram para lutar por igualdade jurídica, nos Estados Unidos e na Inglaterra. O movimento das sufragistas, particularmente, resultou no direito ao voto feminino, entre outras conquistas importantes, já nas primeiras décadas do século 20.
Embora incorporado ao senso comum, esse conceito de feminismo como luta por igualdade jurídica está ultrapassado: já há mais de 50 anos, o feminismo vem se transformando em algo completamente diferente, inclusive nos seus fundamentos. Liberal e democrático em sua origem, o movimento ganhou contornos radicais a partir das décadas de 60 e 70 do século passado, quando, na esteira da contracultura de esquerda então em voga, diversas pensadoras promoveram a “segunda onda” do feminismo.
É importante recapitular algumas ideias dessas autoras, porque elas estão na raiz de vários processos comportamentais que estamos testemunhando hoje. Andrea Dworkin, por exemplo, afirmava que toda relação sexual – mesmo consensual – entre um homem e uma mulher é um estupro, já que reforça a estrutura simbólica de poder imposta pelo patriarcado. Ela hoje seguramente estaria celebrando o projeto de criminalização do olhar masculino, anunciado outro dia, e outras iniciativas para a implantação da “masculinidade frágil” atualmente preconizada como ideal a ser alcançado pelos homens.
Mas a pensadora feminista da segunda onda mais relevante para entendermos o feminismo contemporâneo é a canadense Shulamith Firestone, autora do livro “A dialética do sexo” (1970), ainda hoje adotado em diversas universidades americanas. Ela afirmava, entre outras coisas, que a gravidez era uma forma de opressão, e que as mulheres deviam se libertar da função reprodutiva por meio de tecnologias de reprodução artificial e, naturalmente, do aborto.
Não por acaso, Firestone parece ter sido fortemente influenciada por uma feminista russa, Alexandra Kollontai, que já nos primeiros anos do comunismo soviético antecipou algumas bandeiras defendidas pelo feminismo do século 21: a total desconstrução dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres; a assimilação do feminismo ao ideário socialista; e a deliberada destruição da família como pilar da exploração capitalista, projeto anunciado já em 1884 por Friedrich Engels em seu livro “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” (“Na família, o homem é o burguês, a mulher é o proletário”, escreveu Engels).
Mesmo tendo sido publicado há mais de 50 anos, “A dialética do sexo” é assustadoramente atual: Shulamith Firestone defendia não apenas o aborto legal e generalizado como ferramenta de desconstrução da ordem social machista, como também a garantia de independência total das mulheres pelo Estado - o que implicava, naturalmente, abandonar a economia capitalista e instaurar o socialismo.
Nesse sentido, Firestone enxergava as mulheres como uma classe social, e como tal elas deveriam se comprometer com a destruição das relações de produção e reprodução do capitalismo, aí incluída a reprodução biológica. O aborto seria, portanto, a ferramenta por excelência das mulheres na luta de classes que conduziria à destruição do capitalismo e a chegada ao paraíso comunista.
Mais uma vez fica claro o paralelo com o feminismo comunista de Kollontai, que escreveu: “A libertação da mulher, enquanto membro da sociedade, trabalhadora, indivíduo, esposa e mãe é possível, unicamente, em paralelo à solução da questão social geral e com a transformação fundamental da ordem social atual”.
E ainda: “A pátria comunista alimentará, criará e educará a criança. O Estado dos trabalhadores acudirá em auxílio da família, substituindo-a; gradualmente, a sociedade se encarregará de todas aquelas obrigações que antes recaíam sobre os pais” (“O comunismo e a família”, 1921).
Mas o aspecto mais importante e revelador do programa de Firestone é o seguinte: ela pregava, textualmente, a abolição de todas as diferenças culturais não somente entre homens e mulheres, mas também entre adultos e crianças, de forma que todos, inclusive as crianças, tenham liberdade sexual para fazer o que quiserem – o que evidentemente abre uma porta para a pedofilia. Na sociedade ideal da autora, meninas de 11 anos engravidando de meninos de 13 seriam acontecimentos normais e positivos, e não objeto de escândalo.
Firestone esclarece seu programa nesse trecho de “A dialética do sexo”: “Depois de poucas gerações, relações entre pessoas de idades muito diferentes [incluindo crianças, subentende-se aqui] se tornarão algo comum. O conceito de infância será abolido, e as crianças terão plenos direitos legais, sexuais e econômicos. Durante o curto período da infância, teremos substituído a paternidade psicologicamente destrutiva de dois adultos arbitrários [por um modelo no qual] os tabus das relações homossexuais e das relações entre adultos e crianças desapareceriam”.
Qualquer semelhança com o que acontece hoje, quando uma pedagogia supostamente progressista defende o ensino da ideologia de gênero para crianças em sala de aula, avocando o papel da família e destruindo os direitos parentais na educação, não é mera coincidência. E todos somos obrigados a achar bonito esse movimento, que conta aliás com o patrocínio da Disney.
Não muito tempo depois de lançar “A dialética do sexo”, Shulamith Firestone recebeu um diagnóstico de esquizofrenia paranoide e passou a maior parte de seus últimos anos internada em instituições psiquiátricas – até morrer em 2012, com a saúde mental completamente deteriorada. Não deixa de ser sugestivo que a sociedade esteja se deixando influenciar hoje pelas ideias de uma esquizofrênica.
O feminismo teve ainda uma terceira e uma quarta onda – esta, em pleno curso, é definida pela militância nas redes sociais associada à cultura do cancelamento como forma de combate à misoginia. Antes de analisar essas ondas, porém, convém investigar como se deu, na prática, a implantação das ideias de Alexandra Kollontai na Rússia comunista, o que será tema do meu próximo artigo.
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