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Na contracorrente da narrativa identitária à qual aderiram em massa os progressistas “do bem” e a comunidade acadêmica da universidade com partido, o antropólogo baiano Antonio Risério vem demonstrando, livro após livro, a sua independência e integridade como intelectual e pesquisador. Em 2019, ele lançou "Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária", fazendo críticas severas a movimentos de minoria que, traindo bandeiras em sua origem legítimas, se converteram em juízes e algozes implacáveis, que atacam e desqualificam qualquer forma de pensamento divergente.

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Ao se tornar excludente, em vez de inclusivo, demonstrou Risério, o identitarismo ignora a complexidade da sociedade brasileira e se mostra incapaz de enxergar além dos clichês do cercadinho ideológico de certa esquerda. Um desses clichês reduz a História da escravidão à ação de europeus brancos, que teriam inaugurado essa prática medonha ao escravizar africanos livres. Não foi assim: séculos antes da chegada dos europeus, muçulmanos escravizaram cristãos, árabes escravizaram africanos, e negros escravizaram negros, como aliás afirma o historiador franco-senegalês Tidiane n’Diaye no livro “O genocídio ocultado – Investigação histórica sobre o tráfico negreiro árabe-muçulmano”, resenhado aqui.

O horror da escravidão nunca foi exclusividade de determinado grupo submetendo outro grupo. Mesmo entre nós, ele não se limitou ao esquematismo bipartite convencional. “A escravidão não só existiu em África desde tempos imemoriais como foi lá onde a instituição mais durou (e não no Brasil, como se costuma dizer), chegando ao século 20”, lembra Risério. É uma verdade inconveniente nos dias atuais, quando está na moda apagar o passado e reescrevê-lo seletivamente, de forma a atender aos interesses de uma agenda. Pois é o que se vem ensinado nas escolas: a escravidão foi exclusivamente praticada por brancos europeus – e por causa disso todos as pessoas brancas têm hoje uma dívida histórica a saldar.

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Como escreve Risério em seu novo livro, “As sinhás pretas da Bahia – Suas escravas, suas joias”, recém-lançado pela editora Topbooks: “O problema é que – por manipulação política, truque, cegueira ou estrabismo ideológico – construiu-se, no mundo ocidental oitocentista e na África do século 20, a fantasia de que os negros, essencialmente bons haviam caído, desde o século 15, nas garras de europeus brancos, seres essencialmente maus. Mas este é um discurso que ignora dados e fatos históricos. A África conheceu a guerra, a estratificação social, a escravidão, a moeda e a tortura muito antes de os europeus aparecerem por lá”.

O tema central de “As sinhás pretas da Bahia – Suas escravas suas joias” não deve agradar aos identitários que hoje detêm o quase-monopólio da fala no Brasil: a existência, na Colônia e no Império, de uma elite socioeconômica formada por mulheres negras – africanas ou já aqui nascidas – e mestiças, de origem banto, jeje e nagô, que se libertaram do suplício da escravidão ganhando ou comprando a própria alforria, ascenderam socialmente pelo trabalho e enriqueceram, algo que pareceria impossível em uma sociedade escravista. Essas mulheres, conforme sintetiza o texto da quarta capa do livro:

“...ganharam dinheiro, compraram sua liberdade e, já ricas, passaram a investir em escravos, imóveis e joias. Recebiam o respeitoso tratamento de Dona nas principais cidades do Brasil colonial e imperial, a exemplo de Salvador, do Rio de Janeiro e dobs núcleos barrocos de Minas Gerais. Algumas delas estão na própria origem do candomblé brasileiro: escravas que se tornaram senhoras de escravos – como Iyá Nassô, Marcelina Obatossí, Otampê Ojaró – criaram os hoje famosos terreiros do candomblé jeje-nagô do Brasil, como a Casa Branca do Engenho Velho, o Gantois e o Alaketu.(...) [Elas] não só conquistaram sua liberdade como, em alguns casos, lideraram ações político-religiosas que enriqueceram em profundidade a vida e a cultura brasileiras.”

Mas o que revela o fato surpreendente de que, livres da escravidão, essas mulheres se tornaram, elas próprias, donas de escravos? Que elas eram pessoas más? Evidente que não: elas simplesmente eram pessoas de seu tempo, que seguiam as convenções da época. Costumes segundo os quais, por exemplo, pessoas livres e ricas adquiriam joias e se vestiam de forma suntuosa, com correntes e pingentes de ouro no pescoço e pesadas pulseiras que “tilintavam, sobrepostas, em seu pulso”.

Pessoas livres e ricas adquiriam, também, escravos, como signo de distinção, prestígio, poder e riqueza: este era um ideal de ascensão compartilhado por todos os que aqui habitavam. “A primeira providência de um liberto”, escreve Risério, “era tratar de comprar um escravo para si. Naquela sociedade, uma pessoa sem escravos era um ser vil. Uma figura desprezível. Fracassada”.

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Raramente abordado por nossos sociólogos e historiadores, o fenômeno das sinhás pretas, ricas de joias e senhoras de escravos, revela que, no Brasil escravista, havia inúmeros arranjos possíveis entre a liberdade e o cativeiro

Este era um valor compartilhado que atravessava todos os segmentos da sociedade, já então marcada por um variado espectro de cores e por uma numerosa população – branca, negra e mestiça – que não se encaixava nos dois extremos bicolores da escala social, incluindo, para provável choque dos identitários, ex-escravos que eram proprietários de escravos.

Antonio Risério escreve com conhecimento de causa. Como antropólogo e pesquisador, tem um currículo invejável. Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, ele é autor, entre outros livros, de “A casa no Brasil”, “A utopia brasileira e os movimentos negros” e “O poético e o político”. Entre inúmeras outras atividades ligadas à valorização da cultura negra, Risério teve um papel destacado na recuperação e proteção dos terreiros de candomblé de Salvador, já na década de 1980. Em dezembro do ano passado, publiquei neste blog uma entrevista com ele, a respeito de seu livro anterior, “Em busca da nação”.

Raramente abordado por nossos sociólogos e historiadores, o fenômeno das Sinhás pretas, ricas de joias e senhoras de escravos, na sociedade escravista da Colônia e do Império, revela, também, que, como ressalta Manolo Florentino em seu excelente prefácio, “no Brasil escravista, havia inúmeros arranjos possíveis entre a liberdade e o cativeiro”.

Estes arranjos foram também marcados pela miscigenação e por trocas simbólicas de enorme complexidade, como demonstram, desnecessário dizer, os ensaios clássicos de Gilberto Freyre, como “Casa Grande & Senzala” – que, pelo andar da carruagem, em breve será cancelado e banido das universidades. Mas o fato insuperável é que, como resultado da miscigenação, o Brasil não é, nem nunca foi, um país bicolor: este é um estereótipo falso e daninho, cuja deliberada disseminação atual parece ter como objetivo acirrar conflitos, em vez de superá-los, e jogar brasileiros contra brasileiros, para benefício de um determinado campo político.

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Já no Brasil dos séculos 18 e 19, a precariedade e a pobreza juntaram e misturaram pessoas de todas as cores: portugueses pobres, forros e escravos. Nessa estranha e única química social que caracterizou nossa formação, Risério demonstra que não era incomum que pessoas “de cor”, enriquecidas, como as sinhás pretas, ao ascenderem ao topo da pirâmide, reproduzissem as convenções de sua nova classe, independente da questão racial.

Mais uma vez: eram estes os valores e os costumes da época. Não se pode julgar essas mulheres dos séculos 18 e 19 pelos padrões do século 21, da mesma forma que não tem cabimento julgar e responsabilizar hoje os supostos descendentes de senhores de escravos pelos horrores praticados por seus ancestrais.

Para concluir, mais um trecho do prefácio de Florentino, que merece profunda reflexão:

“Dizer que nossa pirâmide social revela uma das mais iníquas distribuições de renda do planeta é lugar-comum. Afirmar que, sob a ótica racial, ela se assemelha a um gradiente de tons que lentamente transitam do mais escuro da base ao mais claro do topo, também. Mais raro é dar-se conta do prodígio por ela desvelado: mesclamo-nos em profundidade a quem excluímos e, desde sempre, excluímos aqueles com os quais nos confundimos.