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Detalhe do quadro “O jardim das delícias terrenas”, de Hyeronimus Bosch (c.1450-1516)
Detalhe do quadro “O jardim das delícias terrenas”, de Hyeronimus Bosch (c.1450-1516)| Foto: Reprodução

Com fortíssimo apoio dos grandes grupos de comunicação e financiamento milionário dos metacapitalistas – que, até outro dia, eram considerados seus inimigos de classe –, a esquerda global se identifica cada vez mais com a agenda identitária. Este é um fenômeno inescapável do nosso tempo, mas ainda carece de interpretação satisfatória.

É até compreensível que a esquerda institucionalizada tenha deixado de lado a bandeira da revolução proletária pregada pelo marxismo-leninismo. Mas, ainda assim, uma questão intrigante permanece em aberto: o que leva uma pessoa comum, que se considera honestamente socialista, a se aliar, sem qualquer cerimônia ou desconforto moral, aos seus antigos inimigos?

Fato é que os fundamentos econômicos e filosóficos do projeto marxista-leninista foram jogados na lata de lixo da História pela própria esquerda. O inimigo agora é outro, os aliados também. O que levou a militância progressista a dar um duplo twist carpado dessa complexidade e envergadura, sem qualquer rubor ou sinal de vergonha?

Colocado de outra maneira: o que o militante comum ganha com isso? Que vantagens ele julga estar levando? Não vai na pergunta nenhum julgamento moral, já que a defesa do auto-interesse faz parte da natureza humana; trata-se apenas de um esforço de compreensão.

Ainda que presente em muitos casos, a motivação financeira não pode ser considerada o fator primordial aqui – até porque, no final do dia, a gente sabe que somente uma pequena minoria se dá bem; a maioria não passa de massa de manobra, de inocentes úteis, de indivíduos desavisados que são enganados e manipulados para benefício alheio.

Uma resposta possível é que aquilo que está sendo oferecido como isca a esses indivíduos que se julgam de esquerda, independente da classe social a que pertencem mas sobretudo entre os jovens, é algo muito mais valioso que a promessa de uma incerta revolução futura, que um dia varreria o capitalismo da face da Terra e criaria um paraíso de igualdade, com a abolição da propriedade privada.

(Parênteses: é natural que a bandeira da revolução perca naturalmente valor e atratividade à medida que mesmo os jovens progressistas mais alienados entendem que é o capitalismo que gera muitos confortos de que eles usufruem – incluindo os smartphones que usam para lacrar nas redes sociais, incluindo também as próprias redes sociais, que hoje a esquerda tanto se esforça para controlar e censurar, em defesa da democracia. Mas pergunte a um jovem progressista se ele abriria mão da propriedade de seu smartphone em nome de uma sociedade mais justa...)

Talvez o tesouro em troca do qual a militância de esquerda está abrindo mão de seus valores e convicções históricos não esteja situado em um futuro longínquo, ao contrário: ele é acessível agora mesmo, está ao alcance da mão de qualquer um que aceite fazer o pacto fáustico proposto pelas elites interessadas no congelamento do poder: é a legitimação da autopercepção.

Deixem as elites em paz, meu inimigo agora é o fascista pobre que vai à igreja e defende a família, que horror!  

Ser progressista hoje tem pouca relação com as bandeiras tradicionais da esquerda: é, em primeiro lugar, acreditar – e obrigar os outros a acreditarem também – que eu sou aquilo que eu quiser ser; segundo, afirmar que eu tenho direitos especiais por pertencer a um determinado grupo, mesmo que a Constituição determine que todos são iguais perante a lei – já que, como sabiamente escreveu George Orwell em “A revolução dos bichos”, todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.

Ora, o que pode haver de mais valioso que a possibilidade, socialmente legitimada, de eu me tornar tudo aquilo que eu quiser por mero ato de vontade, pela mera afirmação de ser aquilo em que eu quero me transformar? Ou de ter direitos diferenciados pelo simples acaso de ser quem eu sou?

Pois é isto que está sendo vendido quando nos ensinam que é uma hegemonia opressora que determina tudo aquilo que somos, que são construções culturais criminosas as responsáveis por todos os nossos problemas e pequenos e grandes fracassos; quando nos ensinam, também, que todos aqueles que pertencemos a alguma minoria somos vítimas – e que, na condição de vítimas, temos direito a compensações as mais diversas e a tratamentos diferenciados, inclusive pela lei.

Porque a nossa visão de justiça social não é um mundo de harmonia, como aliás prometia Marx com certa ingenuidade. A harmonia não tem graça, o nosso objetivo é trocar de lugar com o opressor.  A luta não é pela igualdade de oportunidades, é pela garantia de resultados.

Ora, se meu próprio sexo é uma construção que nada tem a ver com a biologia ou a genética, se eu posso me reinventar da forma que eu quiser, adotar a identidade que me der na telha (e ai de quem discordar), quais são os limites para a minha realização pessoal?

Se eu tenho a desculpa da vitimização para explicar e justificar todas as minhas falhas, e se todos os meus problemas são decorrentes de uma estrutura social injusta, se eu tenho o direito de apontar o dedo para os outros, de cancelar e perseguir todos os meus desafetos e de fazer do ressentimento a minha razão de viver, que preço pode ser considerado muito alto? Ora, deixem as elites em paz, meu inimigo agora é o fascista pobre que vai à igreja e defende a família, que horror!

Leio, por exemplo, que um novo grupo identitário ganhou forma: os transcapacitados, pessoas sem qualquer impedimento físico que se percebem como tendo algum tipo de deficiência – o que as leva, em muitos casos, à automutilação.

Não muito tempo atrás, isso era classificado como uma patologia, o “transtorno de identidade de integridade corporal”, uma condição rara que gera um descompasso entre o corpo físico e sua autopercepção pela mente. Hoje, em lugar de tratamento, os transcapacitados pedem reconhecimento como minoria, ou seja: nada relacionado à identidade pode hoje ser considerado um transtorno, já que todas as identidades têm direito à existência e a um lugar na sociedade.

Já se cobra, também, respeito à “neurodiversidade”, conceito segundo o qual “as condições neurológicas diversas dos indivíduos são normais no genoma da espécie humana” e, por isso, “não devemos observar pessoas com funcionamento neurocognitivo diverso como doentes ou incapacitadas” – como aliás fez recentemente o presidente, ao falar em “desequilíbrio de parafuso”, sendo imediatamente repreendido pela militância.

Em outras palavras, se a legitimação da autopercepção é tão valiosa, é porque ela oferece um sentido para a vida das pessoas, sentido em troca do qual vale qualquer concessão ideológica. Se me é dada a prerrogativa da superioridade moral em relação aos demais, se me é dado o direito de odiar em nome do amor, de perseguir em nome da justiça e de censurar em nome da liberdade, o que mais posso querer na vida?

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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