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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Assédio e lacração: o caso Boaventura de Sousa Santos

(Foto: Divulgação)

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Pois é. A infame cultura do cancelamento alimentada pelo progressismo para perseguir desafetos saiu do controle e está se voltando contra os seus próprios criadores. Era óbvio que isso ia acontecer. Abriram a Caixa de Pandora, transformaram o ressentimento em ferramenta de militância política e agora estão se dando conta do monstro que criaram.

O caso mais recente é o do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, figura frequente no Brasil. Aos 82 anos, cultuado como um guru pela militância de esquerda, ele está sendo acusado de assédio sexual e até de violação por antigas alunas na Universidade de Coimbra.

Ele nega as acusações, mas o estrago na sua reputação já está feito. Se amanhã ficar comprovada sua inocência, isso não fará a menor diferença, porque no tribunal sumário do cancelamento o castigo vem antes da comprovação da culpa: o cancelado é esfolado preventivamente pela turba do ódio do bem, pelos tarados e psicopatas que, afogados no próprio rancor, acham que destruir a vida dos outros vai melhorar a vida deles. Não vai.

(Parênteses necessários: não tenho a menor simpatia por Boaventura de Sousa Santos e aliás acho seus livros ilegíveis. Tampouco estou afirmando que ele é inocente. É possível que ele tenha mesmo assediado suas alunas; se e quando isso ficar comprovado, que seja responsabilizado e punido na proporção do que fez.

O ponto deste artigo é demonstrar como se tornou fácil, hoje em dia, disparar o mecanismo de assassinato de reputação contra qualquer pessoa. A novidade é que agora ninguém mais está livre disso, nem mesmo um consagrado intelectual de esquerda. Fecho parêntesis.)

Recapitulando:

No final de março, a editora inglesa Routledge lançou uma coletânea de artigos sobre assédio no ambiente acadêmico, “Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics of Care in the University”.

Um dos artigos, lacradoramente intitulado “As paredes falaram quando ninguém se atrevia:  Notas autoetnográficas sobre uso do poder sexual como controle de acesso na academia avant-garde” e assinado por três acadêmicas, fazia acusações de assédio e violência sexual envolvendo um “professor-estrela” do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES).

O trecho do artigo que causou alvoroço foi o seguinte: “Uma estudante internacional de doutoramento decidiu concluir a sua pesquisa no seu país de origem em vez de na instituição. Apenas disse a outra colega a verdadeira razão da mudança: o seu supervisor, o professor estrela, tocou-lhe nos joelhos e convidou-a para aprofundar a relação como pagamento da sua ajuda acadêmica. O professor-estrela já tinha 70 e muitos anos”.

(Já que a moda é esta, percebi uma dose de etarismo na última frase, como se as autoras estivessem debochando da idade do professor... Qual a relevância de ele ter mais de 70 anos?)

Aparentemente, na cabeça do intelectual português, ele está sendo falsamente acusado de assédio por mulheres fascistas e neoliberais que não suportam que ele lute por um mundo melhor. O truque é manjado.

O artigo também relata “abraços longos” e “excessos de familiaridade” – o que hoje pode ser interpretado como violação, certo?

Mas as autoras não fornecem muitos detalhes: “Exigir objetividade a uma descrição de sobrevivente é um ato de violência", elas escrevem, descrevendo a si mesmas como sobreviventes. O caso teria acontecido 10 anos atrás.

Embora sem citar nomes, ficou evidente que o “professor-estrela” citado no artigo era Boaventura de Sousa Santos, que aliás se apressou a vestir a carapuça. Por sua vez, o CES soltou uma nota afirmando que as alegações do artigo nunca foram objeto de uma denúncia formal – o que é um dado relevante.

Mas, como era previsível, a instituição também pagou pedágio para as acusadoras, ao reconhecer que o ambiente acadêmico “reproduz relações de poder desiguais” e anunciar a criação de uma comissão independente para investigar as condutas antiéticas denunciadas.

O problema é que, se a comissão concluir que as acusações são falsas, não haverá consequência alguma. Pior ainda: muito provavelmente, não haverá como provar que as acusações são falsas ou verdadeiras, e vai ficar tudo por isso mesmo. Mas os danos causados não serão desfeitos.

Boaventura anunciou que vai apresentar uma queixa-crime por difamação contra as autoras, que provavelmente também não dará em nada. Em uma carta aberta, “Diário de uma difamação”, ele se defendeu partindo para o ataque: “É um ato miserável de vingança institucional e pessoal. (...) Toda a informação caluniosa que me diz respeito é anônima e assente em boatos, ou seja, em ‘fatos’ para os quais não é oferecida nenhuma prova ou modo de chegar a ela".

Pois é. Mas fizeram isso incontáveis vezes com o outro lado, sem causar a menor indignação em intelectuais e acadêmicos "do bem". Ao contrário: todo o mundo na esquerda se comprazia e se refestelava com o cancelamento de pessoas que não seguiam a mesma cartilha política.

Por outro lado, a reação de Boaventura também é reveladora do estado de coisas a que chegamos: ele acusou as mulheres de "lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor”.

Ou seja, aparentemente, na cabeça do intelectual português, ele está sendo falsamente acusado de assédio por mulheres fascistas e neoliberais da ultradireita negacionista que não suportam que ele lute por um mundo melhor.

O truque é manjado e bastante comum no Brasil, onde qualquer um que critique o governo é imediatamente classificado como um fascista que odeia os pobres e representa uma ameaça para a democracia.

O caso está se transformando em uma bola de neve. Ontem vieram à tona novas denúncias contra Boaventura, desta vez envolvendo uma cientista brasileira, sobre supostos “comportamentos sexualizados e sexualizantes que não deviam ter acontecido”.

Tudo isso é muito triste, mas era também previsível. De certa forma é bem feito para os envolvidos, que um dia, talvez, compreenderão: quem com lacre lacra com lacre será lacrado.

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