Muitos anos atrás (muitos anos mesmo), assisti a uma conferência do escritor cubano Guillermo Cabrera Infante em São Paulo. Crítico da ditadura de Fidel, o autor de “Havana para um infante defunto”, “Mea Cuba” e “Vista do amanhecer no trópico”, entre outros livros, viveu exilado na Europa de 1965 até morrer, em 2005, em Londres.
Lá pelas tantas, alguém pediu que Cabrera comentasse a adaptação para o cinema de seu romance “Três tristes tigres”, feita sem sua autorização pelo cineasta franco-chileno Raul Ruiz, também já falecido. O escritor disse que entrou em contato com Ruiz para tentar acertar um pagamento pelos direitos autorais da obra – que, afinal de contas, era propriedade sua.
O cineasta respondeu citando Proudhon: “Para mim, toda propriedade é um roubo”. Após contar o episódio, Cabrera Infante concluiu: “Ou seja, ele confessou que roubou minha propriedade”. Gargalhadas na plateia.
A história ilustra bem a relação bipolar de certa esquerda com a propriedade – considerada um roubo quando é alheia, mas um direito inalienável quando sua violação afeta o próprio bolso. Resumindo: capitalismo para mim, socialismo para os outros.
Lembrei da conferência de Cabrera Infante ao me deparar com os protestos do escritor e jornalista Fernando Morais contra a pirataria na internet da sua recém-lançada biografia de Lula. Na última quinta-feira, ele postou, indignado, em uma rede social:
“Estão pirateando meu livro sobre o Lula. Ou seja, estão me roubando. O mais grave é que isso está sendo feito por gente de esquerda e, o mais grave, por uma porrada de pessoas do PT. Chamo o ladrão? Vou atrás. Não tenho boi, não tenho banco, não tenho fábrica. Vivo de direitos autorais. Vou atrás e botar essa canalha no banco dos réus”.
(Ironicamente, um dos links que disponibilizam arquivos digitais do livro se chama “Havana Conexíon”.)
Morais não parou aí. Em seguida, ele voltou à rede social para postar, em tom de ameaça aos piratas:
“Aviso aos navegantes: já identifiquei pelo menos uma dúzia de pessoas que estão difundindo cópias pirateadas do meu livro. Com nome, telefone e IP. Serão todos, sem exceção, acionados judicialmente por difusão de material pirateado. Cheio de gente que se diz ou se sente ‘de esquerda’. Só me faltava essa: aos 75 anos, virar caçador de ladrões.”
O comentário de um internauta chamou minha atenção:
“Fernando Morais, essa sua ‘cruzada’ contra a pirataria só está gerando antipatia contra a sua obra. Eu mesmo ia comprar um exemplar – original, deixando claro – e não vou mais. E estimular o dedurismo para ferrar quem está facilitando o acesso a quem não pode pagar 75 reais pelo livro só piora tudo. Pq não conversa com o dono da editora para baratear o livro?”
Objetivamente, Fernando Morais tem toda razão. Desrespeitar direitos autorais é uma forma de roubo. Está no Artigo 184 do Código Penal: "Violar direitos de autor e os que lhe são conexos; pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa".
Mas, justamente por ele ter razão, o episódio é revelador do ambiente de miséria intelectual em que vivemos, no qual o roubo se torna moralmente justificável quando é chamado de “socialização” - isso enquanto a socialização não se volta contra a esquerda.
Os três posts citados contêm frases sintomáticas dos tempos estranhos em que vivemos:
“O mais grave é que isso está sendo feito por gente de esquerda e, o mais grave, por uma porrada de pessoas do PT”.
Ora, por que seria mais grave o roubo estar sendo cometido por “gente de esquerda” e, mais grave ainda, por “pessoas do PT”? A premissa, aparentemente, é que gente de esquerda não rouba, muito menos se for do PT. Porque, como se sabe, as pessoas de esquerda, especialmente se forem do PT, são moralmente superiores e melhores que as outras pessoas.
Ora, com base na História recente do nosso país, esta é uma premissa, digamos, fantasiosa – mas reveladora, nas palavras de um amigo meu, do “arianismo ideológico” que domina a narrativa esquerdista no nosso país: “nós” somos melhores que “eles”; “nós” somos portadores do monopólio da virtude; somente “nós” podemos falar em nome dos pobres; por sua vez, “eles” (isto é, todos que não votam no PT) se comprazem com a fome do povo e defendem o genocídio das minorias.
É este o nível mental que prevalece entre todos aqueles que, declarando-se de esquerda, defendem e praticam a socialização do livro de Fernando Morais – da mesma forma que, por exemplo, o MST defende e pratica a socialização da terra: na mão grande mesmo, invadindo e ocupando. É ilegal, e daí? Ser de esquerda dá carta branca para tudo.
Ora, a mesma justificativa moral para a invasão de terras ou para outras formas de “socialização” da riqueza pode ser usada pela “canalha” que está compartilhando a obra de Morais - inclusive, segundo um áudio vazado, dirigentes do partido e advogados do MST. Afinal de contas, é justo que o direito de acesso da população culturalmente e economicamente desassistida ao conteúdo do livro (que custa 75 reais nas livrarias) se sobreponha ao direito individual do autor de extrair receita de seu trabalho. O direito à propriedade não pode se sobrepor ao direito à igualdade.
Em outras palavras, foi o que escreveram diversos internautas, reagindo aos protestos de Fernando Morais:
“Comunista defender copyright em detrimento da divulgação da biografia do maior líder popular das últimas décadas, não dá”.
“Pobre não tem direito a cultura e entretenimento? Quem não tem dinheiro para pagar, que não leia?”
“O maior direito autoral é ver sua obra difundida para a maior quantidade possível de pessoas.”
“Um papinho desses a essa altura do campeonato? Esquerda encastelada.”
“Querido, eu não tenho grana para ficar comprando os livros que leio não!”
Pois é.
Mas faltou comentar:
“Pq não conversa com o dono da editora para baratear o livro?”
Ilustrando o que escrevi acima, parece que, na cabeça do internauta, o preço de um livro é uma decisão aleatória do dono da editora – a Companhia das Letras, no caso.
Respondendo à pergunta: porque a publicação de um livro é um empreendimento comercial, que precisa dar lucro para que a editora continue publicando novos livros. E, se não tivesse a expectativa de ganhar dinheiro com o trabalho que teve para escrever a biografia de Lula, Fernando Morais não a teria escrito, e o livro não existiria. Simples assim. Mas parece difícil entender.
Além disso, se Morais pedisse para “baratear” o livro, estaria comprometendo o valor dos direitos autorais, dos quais se mostra cioso – como todo mundo que trabalha e quer ser recompensado por isso. Mas quem não trabalha e acha que tem o direito de simplesmente pegar as coisas de graça, como Adão e Eva no Paraíso, está pouco se lixando.
É fácil entender por que a “cruzada” de Fernando Morais contra a pirataria está despertando antipatia entre as pessoas de esquerda, mas qual a surpresa? Geração após geração, os jovens estão aprendendo que vale tudo em nome de uma suposta luta contra a desigualdade.
Os próprios ladrões são, cada vez mais, apresentados como vítimas de um sistema malvadão: em uma sociedade injusta, eles têm o direito de roubar. E se aparece alguém ousando questionar o direito de quem não tem a pegar na mão grande aquilo que não tem, seja um livro ou um pedaço de terra, imediatamente será ridicularizado como fascista ou coisa pior.
Conclusão: chamem o ladrão.
(P.S.: Morais voltou a falar sobre o assunto em uma entrevista à revista "Fórum". Segue o que ele falou, para reflexão do leitor:
“É uma sordidez o que estão fazendo comigo. Dependo disso para viver. Eu vivo há algumas décadas exclusivamente de direitos autorais. Não tenho outra fonte de renda. Mas mesmo que tivesse, mesmo que eu fosse rico, mesmo que eu tivesse o dinheiro que têm os milionários da literatura, continuaria sendo uma sordidez”
“Essas pessoas não percebem que o direito autoral foi concebido para defender o trabalho, não o capital. Se por acaso eles querem piratear quem não depende do trabalho para viver, eles que se dediquem a piratear o Banco Itaú. Vão aos cofres do Itaú, do Bradesco, do Santander, que aí, sim, eles vão bater no lugar certo”.
Ou seja, da mesma forma que existe o ódio “do mal” e ódio “do bem”, dependendo de quem se odeia, há roubo “do mal” e roubo “do bem” – dependendo de quem é roubado.)
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