O maior desafio para um historiador que se dispõe a escrever sobre Adolf Hitler antes do Nazismo é tentar esquecer, por um momento, todo o conhecimento acumulado de que hoje dispomos sobre o catálogo de horrores do Holocausto. Isto é, tentar evitar projetar retrospectivamente, nos acontecimentos narrados, julgamentos e análises que era obviamente impossível fazer na época, quando não se sabia o que ia acontecer no futuro. Somente abrindo mão dessa perspectiva cronocêntrica, desse “privilégio de saber” que nos obriga moralmente a enxergar Hitler como a personificação do mal, podemos compreender como foi possível a um indivíduo em alguns aspectos medíocre acumular tanto poder. Compreender, também, por que a civilizada sociedade alemã se submeteu tão passivamente aos seus comandos, marchando de forma obstinada para o abismo.
É nesse exercício de tentar interpretar os fatos com a perspectiva da época, e não do presente, que “O jovem Hitler – Os anos de formação do Führer” se diferencia de uma biografia convencional. Mesmo sendo menos detalhado e ambicioso que os clássicos trabalhos de Joachim Fest (1973) e Ian Kersahw (1998) – ou do mais recente “Hitler: Biografia”, de Peter Longerich (2015) – o livro do jornalista australiano Paul Ham faz um relato objetivo e uma análise lúcida (e, até certo ponto, original) da história pessoal de Hitler, da infância em Linz aos primeiros anos de sua atividade política em Munique, passando pela Primeira Guerra Mundial, sem perder de vista as forças sociais que determinaram essa trajetória.
É com esse olhar que Ham busca identificar na juventude de Adolf Hitler, habitualmente relegada ao segundo plano, as sementes paralelas de dois processos: a construção de seu caráter peculiar e a criação, na sociedade alemã, do contexto e da atmosfera que permitiram a ascensão de um líder com as suas características. O autor examina aspectos da psicologia de Hitler em seus anos de formação – seu amor obsessivo pela mãe, sua personalidade introspectiva e arredia, sua timidez em relação a mulheres, seu sentimento arraigado de predestinação – que ajudam a explicar como ele se tornou um sedutor tão bem-sucedido do povo alemão. Mas examina também elementos da psicologia de massa que predispuseram a sociedade alemã a ser seduzida.
Ou seja, Ham enxerga Hitler como um produto da Alemanha de seu tempo, não como um demagogo psicopata que emergiu do nada para enganar um povo inocente. Esta é, aliás, uma premissa importante do livro: Hitler era um homem “normal”, em plena posse de suas faculdades mentais. Por chocante que possa parecer esse julgamento, me parece mais correto do ponto de vista moral que classificá-lo como um louco (o que o tornaria, de certa forma, inimputável).
Hitler e o Nazismo só foram possíveis graças a uma conspiração de eventos catastróficos, desencadeados pela derrota da Alemanha na Primeira Guerra (ou, como era então chamada, a “Grande Guerra”). Combinados, o colapso dos antigos impérios europeus, o banho de sangue na guerra e, após seu fim, o colapso econômico agravado pelas sanções do Tratado de Versalhes foram os componentes sinistros que conspiraram para produzir Hitler e o mergulho da Alemanha nas trevas do Nazismo. “O jovem Hitler” detalha, particularmente, como a participação do soldado Adolf no front foi decisiva para forjar o caráter de um dos líderes mais sanguinários do século 20 (ao lado de Stálin e Mao). O autor mostra como, a partir da experiência extrema da guerra, Hitler despertou para uma carreira política baseada na exploração do ódio, do medo, de preconceitos arraigados e do desejo de vingança do cidadão comum, humilhado e faminto.
Em 1914, Hitler já tinha 25 anos e um passado pouco promissor: desajustado socialmente, rejeitado por uma Escola de Arte em Viena, sem amigos nem laços familiares, (sua mãe, por quem devotara um amor obsessivo, morrera precocemente de câncer), ele chegou a morar nas ruas da multicultural Viena. Basicamente, foi a guerra que deu um sentido para sua vida. Hitler amava a vida de soldado: foi ela que lhe deu, pela primeira vez, um emprego fixo, o reconhecimento de companheiros e uma causa pela qual lutar. Em “Minha luta”, ele escreveria que o dia mais feliz da sua vida foi quando recebeu a primeira Cruz de Ferro, após um ato de heroísmo (salvar a vida de um oficial, colocando em risco a própria). Mais que isso, a guerra foi para Hitler uma experiência quase religiosa: as batalhas o deixavam em êxtase, e ele parecia sentir prazer em se apresentar para missões perigosas.
Hitler serviu principalmente como mensageiro, em diferentes regimentos. Era uma função perigosa e com alto índice de letalidade, pois implicava a exposição direta ao fogo inimigo, sem a proteção das trincheiras. Como soldado, participou das sangrentas batalhas de Ypres, do Somme (onde foi ferido por estilhaços de uma granada), de Arras e de Passchendaele. Foi condecorado duas vezes por bravura e, segundo testemunhos da época, sua folha de serviço foi exemplar.
Uma boa leitura para entender o que era a rotina dos soldados na Primeira Guerra é o clássico “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque: o horror provocava uma indiferença embrutecida pelo sofrimento e pela morte, indiferença que Hitler carregou até o fim da vida. Mas não foi só isso: entre outras lições aprendidas no front – ao testemunhar, por exemplo, o estupro da Bélgica pelas tropas alemãs – o soldado entendeu que massacrar inocentes e aterrorizar a população civil era uma eficaz tática de guerra, um método que Hitler aplicaria em escala muito maior ao invadir a Polônia, varrendo cidades inteiras do mapa.
Temporariamente cego e com os pulmões comprometidos por um ataque de gás mostarda em outubro de 1918, Hitler passou várias semanas em um hospital de campanha em Pasewalk. Ainda estava internado quando recebeu a notícia da rendição da Alemanha. Ao recuperar a visão, enxergou um mundo novo: sua pátria derrotada, seu povo humilhado, seu exército destruído. Segundo Ham, sua revolta com a rendição do país não foi somente autêntica: ela refletia o sentimento de boa parte da população. Hitler simplesmente se recusou a aceitar a derrota e jurou vingança contra aqueles que via como culpados pela “monstruosa traição”: os judeus e os comunistas que, aliados ao capital internacional, teriam apunhalado o povo pelas costas.
A partir de 1920, Hitler começou a trabalhar em tempo integral no Partido Nazista, ganhando notoriedade por seus longos e polêmicos discursos contra o Tratado de Versalhes, seus adversários políticos e, especialmente, contra os judeus. A narrativa propriamente biográfica é interrompida em 1925, ano do lançamento de “Mein Kampf – Minha luta”, escrito durante os nove meses que Hitler passou na prisão após o golpe fracassado conhecido como “Putsch da Cervejaria”, em novembro de 1923. Originalmente intitulado “Quatro anos e meio de lutas contra mentiras, estupidez e covardia”, “Minha luta” combina autobiografia e apresentação da ideologia nazista, incluindo a defesa da superioridade da raça ariana e o plano, já em esboço, de se livrar de judeus e outras minorias étnicas, condição indispensável para a construção da "Grande Alemanha".
Esse plano só prosperou porque encontrou terreno fértil em uma sociedade destroçada e economicamente asfixiada, que se tornou o laboratório perfeito para a afirmação de um discurso nacionalista radical, que inflamava o antissemitismo e outros preconceitos latentes entre os cidadãos comuns. Nesse sentido, reafirma o autor, Hitler não foi uma aberração, mas tão somente o reflexo e a consequência do ressentimento então dominante entre os alemães – brutalizados, famintos e predispostos a aceitar a liderança de um líder messiânico – e a descarregar sua raiva naqueles que esse líder apontava como os principais responsáveis pela sua tragédia: os judeus.
No último capítulo do livro, Paul Ham adota um tom de editorial, tentando estabelecer, de forma não inteiramente convincente, paralelos entre o contexto da ascensão de Hitler e a Europa dos dias de hoje. Ainda assim, “O jovem Hitler” cumpre de forma mais do que satisfatória a tarefa de investigar, nos anos de formação do ditador, as origens do mal, individual e coletivamente falando.
O jovem Hitler – Os anos de formação do Führer de Paul Ham (Tradução de Leonardo Alves). Editora Objetiva, 304 pgs. R$ 64,90