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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Lembranças da ditadura

Brasil, ame-o ou deixe-o

Slogan usado pelo governo brasileiro durante o regime militar (1964-1985). (Foto: Governo brasileiro/Wikimedia Commons)

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“Quem não gostar do Brasil vá embora!”

Sei que a comparação já foi feita, mas merece algum detalhamento. Foi de uma infelicidade rara a fala da empresária Luiza Trajano, dona do Magazine Luiza, na última quinta-feira, diante de uma plateia repleta de empresários e investidores.

Não vou propriamente escrever sobre a fala da empresária, que é livre para expressar seu pensamento (liberdade que deveria ser desfrutada por todos os brasileiros), mas sobre o que ela involuntariamente evocou: o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, de triste memória.

Criada durante o mandato do general Emílio Garrastazu Médici, no começo dos anos 70, a frase se tornou um dos símbolos marcantes da ditadura militar. Cartazes, comerciais de TV, jingles e outros materiais publicitários foram amplamente divulgados, para incutir a ideia de que criticar o governo era algo equivalente a trair o país.

O objetivo do slogan “Ame-o ou deixe-o” era explícito: dividir a sociedade entre os que apoiavam e os que criticavam o regime e estimular a intolerância dos primeiros em relação aos últimos. Não havia espaço para a crítica e a divergência.  

Isso em um momento de aumento brutal da repressão, com prisões arbitrárias, censura, controle da mídia e desrespeito a direitos e garantias fundamentais. Ainda bem que nada disso acontece hoje.

O lema nem original era: foi copiado do slogan “USA, love or leave it”, lançado pelo establishment norte-americano durante a Guerra do Vietnã. Era outro apelo patriótico usado para calar a oposição.

Outro slogan criado pela ditadura era: "Quem não vive para servir ao Brasil não serve para viver no Brasil". Na mesma época, a dupla Dom & Ravel compôs a música “Eu te amo, meu Brasil”. Outra canção ufanista bastante popular era “Este é um país que vai pra frente”, da banda “Os Incríveis”.

Algumas características daquele tempo podem soar estranhamente familiares no Brasil de hoje. A ditadura gastou milhões de cruzeiros em campanhas publicitárias para tentar melhorar sua imagem junto à população, explorando os indicadores oficiais do chamado “Milagre Econômico” (1968-1973).

Mas a realidade era bem diferente do que diziam os indicadores: com os primeiros sinais de esgotamento do Milagre, teve início a carestia, com impacto direto no cotidiano dos brasileiros comuns, que já se sentiam sufocados pela atmosfera de falta de liberdade.

Nas entrelinhas do slogan, a advertência aos incomodados era clara: se não calassem a boca, o seu destino poderia ser o exílio ou a prisão. Ou coisa pior.

Nesse contexto de crescentes dificuldades, a estratégia do governo era desviar a atenção dos problemas reais apelando à polarização da sociedade – e desenhando um alvo na testa de qualquer pessoa que ousasse criticar os militares.

Porque, nas entrelinhas do slogan "Brasil: ame-o ou deixe-o", a advertência aos incomodados era clara: se não calassem a boca, o seu destino poderia ser o exílio ou a prisão. Ou coisa pior.

Que permanecessem no Brasil apenas as pessoas que apoiassem incondicionalmente o regime militar; quem não apoiava era gente de segunda classe, que merecia ser extirpada do convívio social.

Ora, uma vez que a imensa maioria dos brasileiros não tinha condições de deixar o país (como também acontece hoje), o jeito era baixar a cabeça e ficar democraticamente calado.

Infelizmente, uma parcela significativa do povo aderiu à narrativa: adesivos com o lema “Brasil: ame-o ou deixe-o” estamparam os vidros das janelas de milhões de carros e apartamentos.

Ora, o que têm em comum um slogan da ditadura militar e a fala desastrada de uma bem-sucedida empresária, em 2024? O fato de que ambos partem, deliberadamente ou não, de uma premissa equivocada.

Ambos partem de um falso dilema, isto é, de uma dicotomia artificial, que na realidade não existe. Ambos impõem aos brasileiros uma escolha binária e excludente, que se baseia na intimidação e na tentativa de controle e manipulação da vontade popular.  

É a lógica do “quem não está comigo está contra mim”. Por essa lógica, contestar o governo é o mesmo que atacar a nação.

Ora, o amor ao país pode e deve se manifestar por meio da crítica, da luta, da oposição. O amor ao país é um sentimento que ultrapassa governos e ideologias: está enraizado na cultura, na História, nos valores da população. A democracia exige que o amor ao país seja plural, sem um alinhamento automático com aqueles que estão temporariamente no poder. Governos são passageiros - e devem estar sujeitos a críticas.

Na ditadura, o governo embaralhava e confundia propositalmente "amar" o Brasil e "aceitar incondicionalmente" tudo que a ditadura fizesse – todas as arbitrariedades cometidas em nome da defesa da pátria contra seus inimigos internos. Amar o país implicava fechar os olhos aos abusos de um Estado de exceção – abusos cometidos, aliás, com apoio ou omissão do Poder Judiciário da época.

Somente em contextos de regimes autoritários ou em períodos de intensa polarização política o amor ao país é tratado como sinônimo de apoio incondicional ao governo

Por exemplo, durante a ditadura o Judiciário, em sua maioria, nem sequer contestou a constitucionalidade dos Atos Institucionais (como o AI-5), argumentando que eles estavam acima da Constituição: a excepcionalidade da ameaça à nação justificava tais medidas. Foi um processo, por assim dizer, atípico, mas necessário.

Juízes e tribunais também colaboraram com a ditadura ao julgar opositores segundo a legislação imposta pelos generais, aí incluída a Lei de Segurança Nacional. O instrumento do habeas corpus foi limitado ou totalmente ignorado, sempre que se tratava de proteger presos políticos.

Desnecessário dizer, raramente se investigavam ou puniam responsáveis por abusos cometidos por agentes do Estado – justamente porque o Estado era o agente dos abusos.

Somente em contextos de regimes autoritários ou em períodos de intensa polarização política o amor ao país é tratado como sinônimo de apoio incondicional ao governo. Somente um governo que não admite oposição nem alternância no poder trata como inimigo ou traidor quem ousa criticá-lo. Achar que falar mal do governo é falar mal do país é uma visão intolerante, excludente e autoritária, que não combina com a democracia.   

Curiosamente, pessoas que combateram (ou combateriam) a ditadura militar nos anos 70 são as mesmas que hoje pedem repressão e censura, tentando impor sua ideologia e interditar qualquer debate. Grupos que foram beneficiados pela Anistia hoje gritam “Sem Anistia!”, com sangue nos olhos. Ao que parece, não é a democracia que se busca, mas uma ditadura amiga, que compartilhe os mesmos inimigos. Nada de bom pode vir daí.

Também é curioso que o slogan de triste memória tenha sido atualizado por uma grande empresária, diante de uma plateia de investidores. Estamos em um momento no qual a paralisia da política fiscal e o aumento da carga tributária desencorajam o empreendedorismo e provocam fuga de capitais. É natural: em economias livres, a aversão ao risco faz o dinheiro buscar ambientes mais seguros e juridicamente estáveis para se estabelecer.

Em um momento assim, não parece boa ideia dar um ultimato a quem tem capital para investir. Porque, a continuar apostando em um país marcado por uma política econômica errática e pela insegurança jurídica, os investidores podem mesmo preferir abandonar o Brasil. Nenhum apelo ao nacionalismo irá sensibilizar o mercado – muito menos se vier embalado em frases que lembram a ditadura.

Conteúdo editado por: Aline Menezes

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