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É difícil sair com otimismo da leitura de “O flagelo da economia de privilégios: Brasil, 1947-2020 – Crescimento, crise fiscal e estagnação”, livro recém-lançado pelo economista e professor da FGV Fernando de Holanda Barbosa. O autor faz uma recapitulação a um tempo desapaixonada e engenhosa da trajetória da economia brasileira ao longo de mais de 70 anos, identificando um padrão que se repete teimosamente, para nossa infelicidade: a cada surto de crescimento seguem-se uma crise fiscal e um novo período de estagnação.
Afirma Barbosa que a reincidência desses ciclos independe de qual partido está no poder, que aliás é sempre disputado por três grupos não-cooperativos - os neoprogressistas, os neopopulistas e os oportunistas, segundo a nomenclatura adotada no livro.
Pessoalmente, entendo como “não-cooperativa” a nossa incapacidade, nas últimas décadas, de reconhecer a derrota para o adversário e torcer pela vitória do Brasil: hoje metade da sociedade brasileira não só odeia a outra metade como prefere ver o país destruído a ver o país dar certo com seus adversários no poder. vale para a esquerda e para a direita.
Segundo o autor, os neoprogressistas defendem a “economia social de mercado” e almejam transformar o Brasil em um país do Primeiro Mundo, combinando bem-estar material com justiça social; os neopopulistas, de inspiração marxista, têm como projeto permanecer no poder a qualquer custo; e os oportunistas (de esquerda, centro e direita) só estão interessados mesmo em se apropriar de recursos públicos para fins privados, de forma legal ou ilegal.
Mas a História demonstra que nenhum dos três grupos conseguiu romper com a arraigada economia de privilégios que consiste na criação de mecanismos por meio dos quais cada grupo pretende viver, de alguma maneira, às custas do Estado. Esse vício de origem resulta, invariavelmente, na alocação ineficiente de recursos, no aumento dos gastos públicos e da corrupção e no declínio da poupança e dos investimentos em infraestrutura.
Por outro lado, a História também demonstra que, seguramente, o pior dos três grupos (ainda pior que o dos oportunistas) é o do neopopulismo de inspiração marxista, que nivela por baixo a qualidade de vida da população, distribui a pobreza equitativamente (exceto para as classes dirigentes) e destrói a economia de mercado. O Estado burocrático e ineficiente toma conta de tudo: nada de bom pode vir daí.
Escreve o autor, com mais detalhes: “Um grupo bastante organizado e importante, composto por empresários obtendo subsídios, transferências e tratamento fiscal diferenciado; trabalhadores com tratamentos especiais inclusive de impostos; funcionários públicos dos três poderes com salários acima do setor privado e até anistiados com aposentadorias e pensões especiais, procura, por vários mecanismos, extrair renda do Estado. O resultado desse ataque predatório nas finanças públicas produz déficit porque uma parte da população não aceita aumento de impostos para pagar a conta. A crise fiscal resulta desse conflito social”.
A cultura brasileira com raízes no patrimonialismo ibérico e na colonização portuguesa criou um comportamento do cidadão que acredita ter direito a tudo e obrigação de nada.
Esse fenômeno da economia de privilégios teria origem na colonização ibérica, tese que não é exatamente original, mas que ganha contornos interessantes nas palavras de Fernando de Holanda Barbosa: “A cultura brasileira com raízes no patrimonialismo ibérico e na colonização portuguesa (...) criou um comportamento do cidadão que acredita ter direito a tudo e obrigação de nada. A obtenção de privilégios do Estado tornou-se uma atividade comum. (...) Uma vez obtido o privilégio, ele se torna direito adquirido. A economia de privilégios faz parte do ordenamento jurídico brasileiro”.
É triste constatar que o autor tem razão, à medida que ele investiga retrospectivamente os tropeços da economia brasileira desde a década de 40 do século passado, auge do modelo de substituição de importações, passando pelo chamado milagre econômico dos anos 60 e 70 (em plena ditadura militar), pela crise da década perdida dos anos 80, pelo celebrado final da hiperinflação com o Plano Real em 1994 e pela ilusão da adoção de uma “economia social de mercado” por Fernando Henrique Cardoso em seus dois mandatos e Lula em seu primeiro mandato.
Há capítulos dedicados aos vários planos de estabilização da economia, ortodoxos e heterodoxos, implantados desde a redemocratização do país, bem como à ascensão e queda do PT, partido que o autor associa ao neopopulismo latino-americano – em função da prática da exploração e perpetuação da pobreza como fonte de conquista e manutenção do poder.
Por fim, o autor dedica um capítulo à política econômica do Governo Bolsonaro em seus dois primeiros anos. Aqui, é necessário dizer, Barbosa parece subestimar o impacto econômico da tragédia da pandemia de Covid 19, tratando as escolhas da equipe econômica de Paulo Guedes como se tivessem sido feitas em tempos normais. Considerando os últimos dados do crescimento acumulado nos anos da pandemia, com o Brasil aparecendo á frente dos países europeus, a análise de Barbosa parece excessivamente severa.
Tudo indica que a sociedade continuará amarrada ainda por muito tempo à dinâmica do subdesenvolvimento, uma vez que nossos próprios valores e instituições parecem inseparáveis da cultura de privilégios que faz parte do inconsciente coletivo dos brasileiros.
Governo após governo, em maior ou menor grau, continuaremos assistindo à apropriação do Estado e de empresas públicas por grupos de interesse; aos privilégios travestidos de direitos; à falta de compromissos éticos e morais na condução da coisa pública; à falência do Estado hipertrofiado; e às inevitáveis consequências de tudo isso, como o aumento da violência e a persistência da desigualdade social. Pobre Brasil, país sem futuro?