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Brasis paralelos
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O Brasil que irá às urnas no próximo domingo está claramente dividido em duas partes, e deve ser reconhecido o direito das duas à existência. Democracia é isso, o convívio civilizado com a diferença.

Estranho é quando uma parte nega à outra parte o direito de se manifestar e até de existir. Quando uma parte se sente no direito de desumanizar a outra, de demonizá-la, persegui-la e calá-la. Quando não se reconhece nem se aceita a vitória da outra parte, mesmo quando ela recebe os votos da maioria. Quando uma parte prefere ver o país destruído a ver o país dar certo sendo governado pela outra.

O que vou escrever abaixo vale para as duas partes:

Não se pode atacar os alicerces da democracia em nome da defesa da democracia.

Não se pode defender a censura em nome da defesa da democracia.

Não se pode espalhar mentiras em nome da defesa da democracia.

Não se pode desrespeitar a vontade da maioria em nome da defesa da democracia.

Não se pode atacar as liberdades individuais em nome da democracia.

Não se pode pregar a tolerância e praticar o ódio em defesa da democracia.

Não se pode relativizar os males da corrupção em defesa da democracia.

Não se pode atropelar a Constituição e a harmonia entre os Poderes em defesa da democracia.

Desconfie de quem faz ou defende tudo isso, não importa se a pessoa está à esquerda ou à direita. Porque muito provavelmente é apenas cinismo, hipocrisia, desonestidade e má-fé. Na melhor das hipóteses, é a manifestação de uma mente ingênua e manipulável, que faz suas escolhas movida pela necessidade de aceitação pelo grupo.

Que a maioria vença, de forma limpa e transparente. E que os eleitores derrotados continuem vivendo em um país onde se possa criticar sem medo, em alto e bom som, o presidente eleito

As duas partes em que o Brasil hoje se divide podem ser caracterizadas da forma abaixo – e aqui não vai nenhum julgamento moral: é uma descrição objetiva dos valores e convicções em disputa nesta eleição.

As duas partes, aliás, acreditam sinceramente que estão certas e acham que têm motivos para crer que é a outra que está errada. Isso é normal. Deve prevalecer a escolha da maioria, e esta escolha deve ser feita em um processo eleitoral transparente, limpo e isonômico, como determinam a lei e o bom senso. Ainda não inventaram um sistema melhor.

Os dois Brasis

Uma parte do Brasil acha que o Estado faz parte do problema, não da solução. Outra parte acha que mais Estado é a resposta para tudo.

Uma parte do Brasil se assusta com a volta da censura, com os ataques reiterados à liberdade de expressão e com a proibição da exibição de um documentário, algo inédito desde a ditadura militar.

Outra parte passa pano e diz que proibir jornalistas de usar determinadas palavras ou de citar acontecimentos fartamente documentados da História recente do país não é censura, é combate a fake news.

Essa parte também acha normal fazer operações de busca e apreensão na casa de empresários por causa de conversas em grupos privados de WhatsApp. Também concorda com prisões por crime de opinião, desde que os presos estejam do lado de lá. E acredita que a mídia deve ser regulada, porque o importante é exterminar o fascismo: liberdade de expressão a gente vê depois.

Uma parte do Brasil se choca com jornalistas e políticos que passaram a vida inteira falando horrores de um candidato e hoje postam fotos sorridentes ao lado dele, desdizendo tudo que disseram no passado – em alguns casos, em um passado recentíssimo. Outra parte acha isso muito natural.

Uma parte do Brasil é contra o aborto, o ensino da ideologia de gênero nas escolas e a liberação das drogas. Outra parte é a favor (este ponto é particularmente controverso, mas também aqui as duas partes têm o mesmo direito de defender livremente as suas ideias: o que não pode é a minoria querer impor na marra, ou na base da canetada, suas ideias à maioria).

Uma parte do Brasil acha que assaltantes devem ser punidos com rigor, e que o crime não é uma consequência necessária da pobreza. Outra parte vê o ladrão como uma vítima da sociedade, que tem o direito de roubar o celular que você ainda está pagando em prestações com o dinheiro suado do seu trabalho.

(Para essa parte, quem achar ruim ser assaltado é insensível à desigualdade social, como já sugeriu uma filósofa ao se declarar a favor do assalto. Direito dela. Todos devem ter o mesmo direito de se manifestar sem medo. Liberdade de expressão é isso).

Uma parte do Brasil acha que a crise da Educação se resolve na linha de partida, com investimento no ensino básico universal e de qualidade e a criação de oportunidades iguais para todos.

Outra parte acha que a crise da Educação se resolve na linha de chegada, com a multiplicação de universidades como forma de compensação para quem nunca recebeu a base adequada. Pouco importa que isso resulte na criação de um exército de diplomados endividados com o Fies e desempregados, porque não foram qualificados para o mercado de trabalho, mas doutrinados para lacrar e exgir direitos sem os deveres correspondentes.

Uma parte do Brasil, aliás, acha que os direitos devem ser iguais para todos, e que os brasileiros devem buscar viver em harmonia, com todos tendo os seus direitos respeitados. Que a luta deve ser para combater as diferenças injustas em relação à igualdade de direitos, que existem e podem ser crueis; não para realçar essas diferenças com direitos diferenciados.

Outra parte acha que direitos especiais devem ser criados para grupos específicos, para compensar dívidas históricas dos nossos antepassados, reforçando assim a divisão e o confronto entre os brasileiros – entre devedores e credores, entre “nós” e “eles”, o que pode gerar divisão e ressentimento. Os dois lados têm suas razões e devem ser igualmente livres para se manifestar.

Uma parte do Brasil está cansada de solavancos na economia e só quer um pouco de paz, estabilidade e previsibilidade, agora que o país volta a crescer depois dos sacrifícios impostos pela tragédia da pandemia.

Outra parte, inclusive entre os mais ricos, que podem pegar um avião para a Europa se tudo der errado, está disposta a dar um voto de confiança no desconhecido, porque acha que a expectativa de que os pobres voltarão a fazer um churrasquinho e tomar uma cervejinha no final de semana compensa os riscos de um cheque em branco.

Uma parte do Brasil olha para a Argentina, para a Colômbia, para a Venezuela e enxerga as consequências práticas para o cidadão comum do receituário adotado por esses países – censura, inflação, miséria, desemprego, violência, gente comendo cachorro.

Outra parte acha que são estes os exemplos a seguir, porque seus governos defendem os pobres, e que devemos adotar o mesmo receituário que deu errado em todos esses países, porque aqui vai dar certinho. Confia.

Uma parte do Brasil se preocupa com a violência, mas observa com algum alívio que os indicadores sobre assassinatos e apreensão de drogas melhoraram de forma significativa nos últimos anos. Ontem mesmo, por exemplo, foi divulgado que o estado do Rio de janeiro, onde essa questão é particularmente grave, está apresentando em 2022 a menor taxa de homicídios dos ultimos 31 anos.

Outra parte prefere ignorar os números e acreditar que as mortes estão aumentando, que a polícia pratica deliberadamente um genocídio dos pobres, e que bom mesmo é morar em comunidades dominadas pelo tráfico, onde policiais não entram. Contra traficante, aliás, nunca vi ninguém fazer protesto.

Uma parte do Brasil foi constrangida durante décadas ao silêncio e só muito recentemente ganhou corpo, espaço e voz, ocupando as ruas e as redes sociais. Mas essa parte continua constrangida ao silêncio nas salas de aula, por exemplo, ou no ambiente acadêmico, ou nas redações da grande mídia.

Outra parte sempre foi muito barulhenta e continua apontando o dedo para a outra sem qualquer cerimônia, porque, mesmo tendo perdido a última eleição, continuou hegemônica nas salas de aula, na academia e nas redações da grande mídia.

Uma parte do Brasil se escandaliza não com aquilo que é dito ou feito, mas com quem diz ou faz. Se for dos “nossos”, tudo bem; se for “deles”, será perseguido e esfolado. É o relativismo moral, a moral total flex.

Uma parte do Brasil acha que a eleição deve ser um processo isonômico, cabendo à Justiça Eleitoral a à mídia o papel de fiadores da lisura desse processo. Outra parte acha que contra o inimigo vale tudo, inclusive a Justiça e a mídia (e os institutos de pesquisa) terem candidato e terem lado.

Nos últimos quatro anos, uma parte do Brasil viu seu candidato ser chamado diariamente de fascista, de genocida, de canibal, de pedófilo, de satanista, sem que ninguém tenha sofrido qualquer retaliação por isso. Jornalistas, aliás, podem escrever que desejam a morte do presidente, ou defender abertamente um golpe militar contra ele, com toda liberdade.

Outra parte não admite sequer que seu candidato seja chamado de algo que nem posso escrever aqui, porque está proibido escrever algumas palavras, e essa parte acha muito legal e democrática essa proibição - sem se dar conta de que, amanhã, a censura que ela aprova pode se voltar contra ela.

Uma parte do Brasil é acusada de violência política pela mídia, mas se veste de verde e amarelo e é capaz de reunir milhões de pessoas em manifestações sempre pacíficas.

Outra parte se veste majoritariamente de vermelho e prega o amor, mas, até o fim do governo passado, suas manifestações terminavam invariavelmente em pancadaria e quebra-quebra (promovidos por uma minoria infiltrada na festa da democracia, é claro).

Uma parte do Brasil acha que invadir terras e imóveis é a solução para resolver a desigualdade no campo e nas cidades. Outra parte acha que isso é crime, e que o direito à propriedade não pode ser relativizado em nome de uma ambígua “função social”.

(Um candidato a governador, aliás, disse recentemente em um comício que bastará escrever uma cartinha denunciando uma propriedade “sem função social” para ele ir lá e desapropriar. De novo, direito dele, e é sempre melhor que as propostas dos candidatos sejam assim claras, para o eleitor não diga depois que foi enganado, ou que não sabia).

Uma parte do Brasil, enfim, olha para atrás com nostalgia, para a memória de um passado idílico onde reinava o amor, todos eram felizes e os pobres comiam picanha e viajavam de avião, para desespero das elites brancas e fascistas. Os eleitores mais jovens não têm como se lembrar disso, é claro, mas acreditam piamente no que aprenderam em sala de aula.

Outra parte olha de forma pragmática para o futuro, para os desafios concretos de um mundo que é muito diferente – e exige respostas muito diferentes – daquele de 2003 a 2010. (O Congresso, aliás, também será muito diferente.) Mais uma vez: olhar para trás e olhar para frente são direitos de todos, cada um olha para onde quiser.

São dois Brasis paralelos, e os dois têm igual direito à existência e ao voto. Que a maioria vença, desde que seja de forma limpa e transparente. Que os três Poderes voltem a se respeitar e a respeitar os próprios limites. E que todos os eleitores, vencedores e derrotados, vivam em um país onde se possa criticar sem medo, em alto e bom som, o presidente eleito ou qualquer autoridade constituída. Porque é assim que as coisas funcionam em uma democracia.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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