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O episódio não é tão recente, aconteceu em março – mas eu só soube agora e não resisto a comentar, porque é uma daqueles casos que ilustram à perfeição o espírito do nosso tempo.

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Resumindo a história: aderindo à epidemia de marketing de lacração que vem contagiando muitas empresas, a cervejaria Heineken teve a ideia brilhante de usar suas redes sociais para apoiar o “dia mundial sem carne”, um movimento que, segundo entendi, prega a abstenção do consumo de carne às segundas-feiras e incentiva as pessoas a “comer mais verde”:

“Neste Dia Mundial Sem Carne, que tal comer e beber mais verde? A cerveja feita com água, malte, lúpulo e nada mais. É a opção perfeita para o acompanhamento de hoje”, dizia a postagem, naquele tom paternalista habitual nesse tipo de campanha.

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A mensagem subliminar era: “Nós somos bonzinhos e estamos preocupados com a sua saúde e com o meio-ambiente, por isso sugerimos que você, consumidor descolado e do bem, coma menos carne. Mas continue bebendo cerveja!". Certo, porque cerveja não faz mal nenhum à saúde nem ao meio-ambiente. Aham...

Como era previsível para qualquer pessoa de bom senso – exceção feita aos executivos responsáveis pelo marketing da cervejaria – a reação negativa foi imediata, não apenas entre os consumidores comuns, mas também entre os empresários do agronegócio (de cuja cadeia produtiva a Heineken, aliás, faz parte, já que a cerveja é produzida com matérias-primas como cevada e lúpulo.

Este foi um caso impressionante de lacração reversa. A regra é clara: quem com lacre lacra com lacre será lacrado

Um dirigente uma entidade de pecuaristas classificou como vergonhosa a atitude da marca de cerveja: “Não respeitaram os produtores rurais e nem mesmo o Brasil, que é o maior exportador e segundo maior produtor de carne bovina do mundo. Esse setor gera renda, emprego, divisas e dignidade para muitos brasileiros”, afirmou.

Outro representante da indústria pecuária foi além: “O churrasco sempre combinou com cerveja, e a marca pede para não comer carne? Isso é uma coisa sem nexo e ofende quem produz e trabalha para alimentar o país. Quem sairá perdendo será a marca.”

Já a Associação dos Criadores de Carne Nelore postou em suas redes sociais a seguinte mensagem: “Carne é nossa fiel paixão, cerveja é somente uma opção”, enfatizando que as cervejarias deveriam ser “parceiras da pecuária, e não inimigas”.

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De fato, como a Heineken reagiria se fosse o contrário, isto é, se os pecuaristas lançassem uma campanha nas redes sociais defendendo a abstenção do consumo de cerveja? Pois é.

Consumidores comuns também reagiram na seção de comentários, afirmando que não deixariam de comer carne, principalmente bovina, em nenhum dia da semana. Alguns foram além, afirmando que passariam a segunda-feira comendo churrasco, acompanhado de cervejas artesanais nacionais.

Não parou aí. Empresários e consumidores lançaram a hashtag #ChurrascoSemHeineken, que viralizou nas redes sociais - com o apoio da Federação Brasileira das Associações de Criadores de Animais de Raça e outras entidades. Com postagens trazendo fotografias de consumidores jogando fora garrafas de cerveja da marca, ou mesmo usando latinhas para praticar tiro ao alvo.

No dia seguinte, a Heineken recuou, mas com outra postagem infeliz, que dizia: “Para não restarem dúvidas, além de água, malte e lúpulo, sabe qual nosso ingrediente secreto? O respeito por todos os gostos”

Foi outro comportamento típico do marketing de lacração: em vez de reconhecer o erro, adotar uma postura arrogante, que só serve parta irritar ainda mais o consumidor, que pensa: “Ora, se essa marca de cerveja respeita todos os gostos, porque aderiu a uma campanha contrária a quem gosta de carne?”

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Como todo comportamento moralista, o marketing lacrador não leva ao consenso, mas à divisão e ao conflito

Procurada na época pelo Canal Rural, a marca reiterou o erro, insistindo em tentar justificar uma decisão equivocada, com uma nota que dizia que a intenção da postagem era mostrar ao público que a cerveja também atende aos veganos:

“Em relação ao post do último dia 20, o único objetivo era reforçar que, por ser uma cerveja com ingredientes naturais em sua receita, feita exclusivamente com água, malte e lúpulo, e nada mais, também é uma opção viável ao público que segue um estilo de vida diferente e opta pelo consumo de produtos veganos. Assim como é uma opção às pessoas que amam carne. O fato não significa, de forma alguma, a desvalorização de qualquer setor da economia, apenas ressalta o direito de escolha dos consumidores”.

Ora, a explicação não fez muito sentido. Se a intenção era conquistar o consumidor vegano, aliás minoritário em relação ao carnívoro, a campanha deveria ter um foco positivo, em vez de atacar um hábito de consumo da imensa maioria dos consumidores da marca. Imagino que, para cada like de um vegano lacrador, a marca deve ter recebido 20 dislikes de pessoas comuns - que gostam de carne, gostam de cerveja e estão de saco cheio de patrulha de gente “do bem”.

Este foi um caso impressionante de lacração reversa. A regra da lacração reversa é clara: quem com lacre lacra com lacre será lacrado. O prejuízo à marca não foi pequeno.

Episódios assim tendem a se multiplicar enquanto não inventarem uma vacina que combata a pandemia de lacração e de bom-mocismo fake que assola o país. Porque a lacração é sempre sectária: como todo comportamento moralista, o marketing lacrador não conduz ao consenso e à harmonia, mas à divisão e ao conflito. Já passou da hora de as empresas que adotam essa estratégia equivocada se darem conta disso.

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