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Na sexta-feira passada, talvez por se sentir esquecido pela mídia, Lula encontrou uma forma de voltar ao noticiário: em entrevista a um canal do Youtube, ele se retratou por ter concedido refúgio ao assassino e terrorista Cesare Battisti em 2010, no último dia de seu mandato. Somente em janeiro de 2019 Battisti foi finalmente extraditado para a Itália, onde confessou ter cometido os quatro assassinatos de que era acusado e pelos quais já tinha sido condenado à prisão perpétua – pena que hoje cumpre em um presídio de segurança máxima, na Sardenha.

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Em seu pedido de desculpas, Lula, mais uma vez, alegou ter sido enganado:

"A base da verdade na política é você não prejudicar um amigo”, afirmou o ex-presidente. “Se cometeu um crime, (...) o advogado vai saber como defender. Eu acho que, como eu, todo mundo da esquerda que defendeu o Cesare Battisti ficou frustrado. (...) Eu não teria nenhum problema de pedir desculpas à esquerda italiana, de pedir desculpas à família do Cesare Battisti, por ele ter praticado o crime que cometeu e ter enganado muita gente no Brasil. Se nós cometemos este erro, pedimos desculpa."

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“Temos que agradecer a ele?”

O assunto já estava esquecido, e trazê-lo à tona não foi uma boa ideia. A melhor resposta a Lula foi a de Alberto Torregiani, filho de um comerciante assassinado por Cesare Battisti em Milão, em 1979. Baleado na coluna, o próprio Alberto ficou paraplégico no atentado que matou seu pai. Ele tinha 15 anos quando perdeu o movimento das pernas.

"As desculpas de Lula? Melhor tarde do que nunca. Mas são inúteis. Agora quero ver o que diz quem havia apoiado sua decisão. Por que falar isso hoje? Para ser notícia? Ele terá as suas motivações pessoais (...) Nós não fazemos nada com as suas desculpas".

Alberto também escreveu, em uma rede social:

“As desculpas de Lula não têm propósito, estou pasmo. De onde vem essa declaração? Qual é o ponto? Este vírus está causando danos. Mais do que piadas, sarcasmo, não posso fazer. Temos que agradecer a ele? Ele nos fez passar por tribulações e sofrimentos por anos, apenas para saber que estávamos certos? É degradante.”

Proletários Armados pelo Comunismo

Cesare Battisti era líder da organização extremista “Proletários Armados pelo Comunismo”, que combatia “a hegemonia do poder capitalista” na democracia italiana. Além de Torregiani, Battisti matou ou mandou matar o açougueiro Lino Sabadini e os policiais Antonio Santoro e Andrea Campagna.

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Julgado e condenado, após uma série de fugas espetaculares para a França e o México, Battisti desembarcou em 2004 no Brasil – onde recebeu solidariedade e proteção dos companheiros no poder até 2018, quando o presidente Michel Temer finalmente determinou sua extradição. Battisti fugiu mais uma vez, agora para a Bolívia, onde acabou sendo detido e despachado diretamente para a Itália, onde está finalmente pagando por seus crimes.

Se o PT não tivesse sido catapultado do poder com o impeachment de Dilma Rousseff, Cesare Battisti continuaria desfrutando de sua liberdade no Brasil, posando de idealista injustiçado e jurando inocência até hoje – com o apoio dos virtuosos da causa revolucionária, que o trataram como herói. Alguém duvida?

Mas voltemos à declaração de Lula, que merece uma análise mais detalhada.

Um novo conceito de verdade

  1. "A base da verdade na política é você não prejudicar um amigo”.

Essa frase merece se tornar objeto de estudo nas faculdades de Filosofia, porque estabelece, simplesmente, um novo conceito de verdade: a verdade companheira. Verdadeiro em política não é aquilo que se comprova com base na objetividade dos fatos, mas aquilo que não prejudica os amigos.

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Decorre daí que, hipoteticamente, se um amigo for flagrado desviando dinheiro público, ele não pode ser prejudicado, porque, sendo um amigo, não é verdade que ele roubou. (Os inimigos, por sua vez, podem ser prejudicados à vontade, mesmo sem roubar, já que, não sendo amigos, estão excluídos da ”base da verdade”.)

Isso explica muita coisa na História recente do país. Fornece, também a chave conceitual e filosófica para entendermos a divisão deliberada e fratricida dos brasileiros entre “nós” e “eles”, promovida durante os governos do PT (divisão que, diga-se de passagem, agora está colhendo seus frutos, no governo Bolsonaro: é a lei do retorno): sendo a verdade uma questão de amizade, ela estará sempre do “nosso” lado, e nunca do lado “deles”. Lula considerava Battisti seu amigo. Logo, Battisti não poderia ser prejudicado. Daí Lula negar sua extradição. Um silogismo irrefutável na sua clareza.

Assassinatos “do bem”

2) “Eu acho que, como eu, todo mundo da esquerda que defendeu o Cesare Battisti ficou frustrado”.

A imensa maioria das pessoas que defenderam Battisti o fez sabendo que ele era culpado – por acreditar que sua causa era justa ou por seguir o princípio de que amigos não podem ser prejudicados.

Com toda a informação disponível, só os inocentes úteis ou os muito burros poderiam acreditar na inocência do terrorista italiano. No fundo, o que prevalecia entre aqueles que apoiavam sua permanência no Brasil era a convicção de que Battisti cometera “assassinatos do bem”, em nome de uma “ideologia do bem”. Conheço gente que ainda hoje afirma que o terrorismo e o assassinato de inocentes será moralmente justificado se servir à causa da revolução.

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Ora, Lula não é inocente útil nem burro (a seu modo, é muito inteligente). Ele está apenas reencenando o roteiro tantas vezes repetido, desde as primeiras denúncias do Mensalão, lá atrás, já em 2005: “Fui enganado”; “Eu não sabia”; etc. Aliás, também como em outras ocasiões, o muy amigo ex-presidente jogou a culpa pelo seu erro em outra pessoa – no caso, seu colega de partido Tarso Genro, que era seu ministro da Justiça em 2010:

"[Tarso Genro] achava que ele [Battisti] era inocente. O Tarso Genro me disse o seguinte: 'Não dá para mandar ele embora porque ele pode ser detonado na Itália e ele é inocente'. (...) Por isso, me ative naquilo que meu ministro disse, que ele era inocente, que não tinha provas da culpabilidade".

Desculpas no condicional

3) “Eu não teria nenhum problema de pedir desculpas à esquerda italiana, de pedir desculpas à família do Cesare Battisti, por ele ter praticado o crime que cometeu e ter enganado muita gente no Brasil. Se nós cometemos este erro, pedimos desculpa".

O que chama a atenção aqui é o caráter duplamente condicional do pedido de desculpas: “Eu não teria...”, “Se nós cometemos...”. O papo nunca é reto. Ora, quem realmente se arrepende de algo e quer se retratar diz, claramente: “Errei e peço desculpas”. Sem futuros do pretérito nem conjunções subordinativas condicionais.

Aliás, mesmo no condicional, observe-se que Lula só pede desculpas à esquerda italiana, não à direita ou ao povo italiano. Porque, sendo inimiga, a direita está excluída da base da verdade na política e, portanto, não tem direito a pedido de desculpas. Do povo italiano inteiro, só a esquerda merece um pedido de desculpas.

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Por fim, Lula não pede desculpas (condicionais) não por ter protegido um terrorista e assassino, mas “por Cesare Battisti ter cometido o crime que cometeu e por ter enganado muita gente no Brasil!”; ou seja, pede desculpas por erros alheios. Lula se apresenta como vítima de um amigo que o enganou, não como alguém que tinha o dever de extraditar um assassino e decidiu não fazê-lo.

“A causa era bonita”

O leitor atento terá observado que saltei um trecho da declaração de Lula – “Se cometeu um crime, (...) o advogado vai saber como defender”. É porque essa frase chama a atenção para um personagem esquecido dessa história, merecendo por isso algum destaque.

Na cobertura das declarações de Lula, ninguém ou quase ninguém lembrou um detalhe importante: o advogado em questão, que defendeu com muita competência Cesare Battisti, era Luis Roberto Barroso, hoje ministro do STF. E há quem assegure que seu desempenho na defesa de Battisti foi um fator decisivo para sua indicação, por Dilma, para uma vaga no Supremo, em 2013.

O fato é que, quando indagado por que decidira defender um homem condenado em seu país por quatro assassinatos, Barroso respondeu que “a causa era bonita”, conforme reportagem publicada no site da Conjur em 2011, "O advogado que garantiu a liberdade de Battristi", da qual transcrevo o trecho abaixo:

“Por que, então, embarcar nessa aventura? “A causa era bonita”, justifica. O advogado viu beleza no fato de defender "um velho comunista, que faz parte do lado derrotado da história, e que a Itália, 30 anos depois, veio perseguir no Brasil". Acima de tudo, Barroso acreditou em Battisti. "O Cesare me olha nos olhos e diz: 'Não participei de nenhum desses homicídios'. Eu acredito no que ele me diz.”

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Pois bem, o ministro Barroso não se pronunciou sobre o pedido de desculpas de Lula, apesar de também ter acreditado na inocência de Cesare Battisti - e de ter contribuído decisivamente para adiar por quase 10 anos a prisão do assassino na Itália. Mas ontem ele se pronunciou sobre o presidente Jair Bolsonaro, fazendo uma provocação desnecessária, extemporânea e inadequada para um ministro do STF, ainda mais em um momento de necessária pacificação entre os Poderes.

Moral e revolução

Encerro citando o livro “Moral e revolução”, de Leon Trotsky, para reflexão do leitor. No trecho abaixo, Trotsky respondia a um grupo de revolucionários que condenava o uso da mentira e da violência como arma política:

“A mentira e a violência por acaso não são coisas condenáveis “em si mesmas”? Por certo, como é condenável a sociedade dividida em classes que as engendra. A sociedade sem antagonismos sociais será, evidentemente, sem mentira e sem violência. Mas não é possível lançar uma ponte para ela senão com métodos violentos. A própria revolução é o produto da sociedade dividida em classes, da qual ela leva necessariamente a marca. Do ponto de vista das “verdades eternas” a revolução é, naturalmente, “imoral”. Mas isso significa apenas que a moral idealista é contra-revolucionária, isto é, encontra-se a serviço dos exploradores.”

Para Cesare Battisti, como para a maioria daqueles que o defenderam, o raciocínio é o mesmo. Como a verdade, a moral é um conceito flexível, determinado pelo lado em que se está. Existem, em suma, “a moral deles e a nossa” – título, aliás, de outro texto de Trotsky.

“Agora quero ver o que diz quem havia apoiado sua decisão”, perguntou Alberto Torregiani, referindo-se ao pedido de desculpas de Lula. Alberto, aqueles que apoiaram a proteção a Battisti não vão dizer nada, porque, no íntimo, continuam achando que estavam certos, mesmo que finjam arrependimento ou fiquem em silêncio.

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Não se iludam: na cabeça de muitas pessoas, “métodos violentos” e assassinatos continuam sendo plenamente justificados, se servirem à ideologia "do bem" à qual elas teimam em aderir, mesmo que esta ideologia já tenha sido tantas vezes desmoralizada pela História.