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Luciano Trigo

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China e Estados Unidos caminham para a guerra?

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“Deixai a China dormir, pois, quando acordar, o mundo tremerá”. A advertência foi feita por Napoleão Bonaparte em 1817, há mais de 200 anos. Segundo o historiador americano Graham Allison, da Universidade Harvard, a China finalmente acordou, e chegou a hora de o mundo tremer. Este é o tema do livro “A caminho da guerra – Os Estados Unidos e a China conseguirão escapar da armadilha de Tucídides?”, da editora Intrínseca. Lançado em 2017 nos Estados Unidos, onde provocou grande controvérsia, a obra chega ao Brasil em meio a uma pandemia que acirra a hostilidade entre as duas potências, tornando a advertência de Allison ainda mais preocupante.

O subtítulo faz referência ao historiador e general ateniense Tucídides, que relatou o confronto entre Atenas e Esparta em sua “História da Guerra do Peloponeso”. Escrito no século 5 a.C., o tratado foi dedicado “aos homens que desejam ver claramente o que ocorreu e ocorrerá novamente, com toda a possibilidade humana, de maneira idêntica ou semelhante”. Segundo Tucídides, “foi a ascensão de Atenas e o medo que isso incutiu em Esparta que tornou a guerra inevitável”. Desde então a História tem demonstrado que, sempre que uma potência em ascensão ameaça a hegemonia da potência dominante, as duas entram em uma rota de colisão que resulta, na maioria dos casos, em guerra declarada. Esse processo estaria acontecendo hoje com a China e os Estados Unidos. Segundo Allison, ao longo dos últimos 500 anos, a armadilha de Tucídides ocorreu em 16 ocasiões ― e em 12 delas levou à guerra.

Embora um confronto armado entre as duas potências não parece ser um cenário realista a curto prazo, os desafios que a China está impondo à ordem global estabelecida desde o fim da Guerra Fria merecem ser levados a sério. O país asiático já detém o poder de estabilizar ou desestabilizar a economia de qualquer país do planeta (Brasil, inclusive), e o deslocamento do poder econômico para o Oriente é atestado pelo gráfico abaixo, extraído do livro “A caminho da guerra”:

Um aspecto decisivo desse processo é a crescente influência econômica, militar e cultural da China em países do Pacífico. Saber como e até que ponto os Estados Unidos devem resistir a esse expansionismo será uma das questões mais críticas da geopolítica internacional na próxima década. Colocado de outra maneira: em que medida China e Estados Unidos conseguirão evitar cair na armadilha de Tucídides?

Talvez não consigam. As duas potências se enxergam como predestinadas a exercer um papel de liderança no planeta, e ambas têm hoje lideranças que parecem dispostas a defender agressivamente seus interesses políticos, econômicos e estratégicos. Os presidentes Donald Trump e Xi Jinping prometeram tornar suas nações “grandes novamente”, e a política externa é um eixo fundamental desse projeto. No caso da China, após dois séculos de humilhação e pobreza, o “sonho chinês” de recuperar o protagonismo de outrora começa a ganhar contornos de realidade.

Embates comerciais e disputas tecnológicas têm marcado a relação entre os dois países nos últimos anos, e parece haver diferenças inconciliáveis em relação a pelo menos três pontos: propriedade intelectual, transferência de tecnologia e acesso a mercados. Washington acusa a China de roubar propriedade intelectual de empresas americanas, e a Justiça chinesa (subordinada ao Partido Comunista) de ser complacente, sempre favorecendo as empresas locais. Os Estados Unidos também contestam as práticas comerciais chinesas, com empresas fortemente subsidiadas pelo Estado competindo internacionalmente de forma desigual, ao mesmo tempo em que o mercado interno chinês é fechado à competição externa. Por fim, o anunciado projeto “Made in China 2025” revela explicitamente a ambição de Perquim de superar a supremacia americana em setores estratégicos, incluindo a infraestrutura de redes 5G.

Taiwan é um outro foco de conflito potencial. E as águas crescentemente militarizadas do mar ao sul da China já foram palco de alguns incidentes que podem se repetir com consequências mais sérias. O problema é que as frentes de atrito se multiplicam, e um conflito regional pode ser a faísca que irá disparar uma escalada incontrolável de violência, no contexto atual.

A pandemia de Covid-19 pode estar acelerando esse processo de disputa e tensionamento. Basta verificar o que aconteceu com as economias dos países do G20 no segundo trimestre de 2020:

Fonte: data.oedc.org<br /><br />

À primeira vista, a tendência é a China ampliar as suas vantagens geoestratégicas depois da pandemia. Mesmo tendo sido o epicentro original da Covid-19, o país conseguiu ser menos afetado, voltando mais rapidamente à normalidade que o restante do planeta. Mas o fator Covid também serve para realçar as diferenças entre os regimes políticos das duas potências: apenas em uma ditadura poderiam ser tomadas as medidas que resultaram, na China, no controle rápido e eficaz da pandemia. Nas democracias, qualquer ação do governo que resulte em restrições às liberdades individuais enfrenta forte resistência – como, aliás, aconteceu e continua acontecendo no Brasil, onde boa parte da população se recusa até mesmo a usar máscaras para desacelerar o ritmo do contágio.

Paradoxalmente, segundo o Edelman Trust Barometer, a China é o país do planeta com o mais alto nível de confiança da população no governo: a maioria dos chineses está satisfeita com a liderança de Xi Jinping – que parece ter ficado ainda mais popular depois da pandemia. O que isso revela é que não se trata de uma disputa entre duas potências com características semelhantes, entre dois povos, duas culturas e duas democracias liberais que compartilham as mesmas crenças e valores, mas de um verdadeiro choque de civilizações – conceito explorado em outro contexto pelo cientista político Samuel P. Huntington. O que está em curso é um embate entre dois modelos de organização da vida em sociedade radicalmente diferentes e incompatíveis. Mesmo que não chegue às vias de fato, os desdobramentos desse confronto determinarão em grande medida como serão as vidas das futuras gerações.

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