Um ”programa de crédito social” que está sendo implementado na China avalia cada cidadão de acordo com seu comportamento social, com base uma pontuação que determina punições e recompensas. Os dados são coletados nas redes sociais, em registros governamentais e fazendo uso de dispositivos de reconhecimento facial. Se a pontuação de uma pessoa for ruim, ela poderá, por exemplo, ter dificuldade para se matricular em uma boa escola, ou para conseguir um bom emprego – ou poderá até mesmo ser impedida de viajar. O objetivo do programa é “proporcionar benefícios aos confiáveis e disciplinar os indignos de confiança”, além da de promover “valores morais”.
Esse sistema de vigilância e de repressão à dissidência, que parece saído de um episódio da série “Black Mirror”, é apenas um dos inúmeros aspectos do pesadelo totalitário chinês examinado pelo jornalista Rafael Fontana no livro “Chinobyl – Uma jornada pelas entranhas da ditadura comunista”. Combinando reminiscências pessoais e análise política, o autor escreve com conhecimento de causa: ele morou e trabalhou (como professor universitário) na China entre 2015 e 2018, período em que testemunhou as estratégias do Partido Comunista Chinês para controlar a vida das pessoas.
- “Chinobyl” faz críticas duras à ditadura comunista chinesa. Você acredita que sofrerá algum tipo de retaliação por causa do livro, se voltar à China? O que pode acontecer?
RAFAEL FONTANA: Excelente pergunta para começar a entrevista, mas ela precisa ser feita ao Partido Comunista Chinês [risos]. A resposta deles será uma mentira, como de costume, mas seria interessante ver o que eles respondem. Minha análise sobre uma possível retaliação se sustenta por fatos. Por exemplo, eu morava em Pequim no ano de 2018 quando testemunhei o desaparecimento do presidente da Interpol na capital chinesa. Meng Hongwei, de nacionalidade chinesa, foi preso pelas autoridades locais assim que pisou em solo chinês, e seu paradeiro permaneceu desconhecido por duas semanas. Meng está preso até hoje na China, incomunicável. Prisões, desaparecimentos e execuções são comuns aos desafetos da ditadura chinesa.
- Você testemunhou casos de preconceito e discriminação contra minorias religiosas? De que forma o regime chinês lida com cidadãos ou visitantes que querem praticar sua fé – cristãos, inclusive?
RAFAEL: Eu morei em duas cidades bastante tolerantes com os cristãos, Shijiazhuang e Pequim. Ao menos os estrangeiros gozavam de liberdade para frequentar igrejas e cultos. Essas localidades, a exemplo de Xangai, servem como uma vitrine da suposta tolerância religiosa do regime. Porém, mantive contato com cristãos de outras regiões chinesas, e os relatos de perseguição são cada vez mais frequentes. Os fechamentos de templos se tornaram uma rotina nos últimos anos. Budistas podem frequentar seus templos, desde que não divulguem imagens nem convençam amigos chineses a exercer sua fé. Já os muçulmanos sofrem uma perseguição mais efetiva, implacável até, sobretudo os uigures. E a Falun Gong [prática espiritual de meditação baseada no budismo e no taoísmo] é combatida com vigor pelas autoridades governamentais, a ponto de mudar sua sede para Nova York. Visitantes religiosos não são bem-vindos.
- Como o regime lida com minorias de raça e de gênero? Existe espaço para defesa de bandeiras identitárias na China? As pessoas protestam contra racismo, homofobia?
RAFAEL: Olha, embora a ditadura chinesa se aproveite das minorias em sua propaganda oficial, o fato é que elas estão sendo dizimadas. Suas culturas sofrem cada vez mais controle do partido, e os costumes antigos são desencorajados. Os idiomas, por exemplo, estão sumindo, porque o partido impõe o mandarim como a única língua. Quanto às políticas públicas envolvendo o sexo das pessoas, o governo tenta aumentar a presença de mulheres nos cargos de liderança, e tem obtido êxito. Já sobre racismo, ninguém protesta, isso seria mal visto pela sociedade. O racismo existe, é latente, está em todos os lugares, mas os chineses sequer entendem a definição de racismo, ele está incorporado no dia-a-dia. Por fim, os chineses desconhecem conceitos abstratos como alguns criados recentemente no Ocidente, e a ditadura combate quaisquer grupos que tentarem gerar conflitos na sociedade baseado em ideias abstratas.
Embora a ditadura chinesa se aproveite das minorias em sua propaganda oficial, o fato é que elas estão sendo dizimadas
- Qual é a situação da mulher na sociedade chinesa, comparada, por exemplo, com o Brasil?
RAFAEL: Isso daria outro livro, sério, de tanta complexidade que o tema demanda. Ao mesmo tempo em que as mulheres trabalham em funções distintas, como motoristas de ônibus, elas ainda são oferecidas pelas suas famílias aos futuros noivos. A maioria dos casamentos são arranjados, e a mulher tem menos poder de escolha que os homens. A mulher chinesa divorciada é praticamente excluída do convívio social, ela sobrevive em um mundo de isolamento. Conheci de perto histórias bem tristes. Correndo o risco de ser simplista, podemos dizer seguramente que a mulher chinesa ocupa melhores posições no mercado de trabalho, mas socialmente ela ainda é bastante submissa aos homens.
- Como explicar que a esquerda progressista brasileira, que hoje defende pautas identitárias, se alinhe a uma ditadura que persegue minorias?
RAFAEL: Sendo bastante honesto, vou ficar te devendo uma resposta por não dominar a temática. A esquerda brasileira inventa novas narrativas a cada mês, eu felizmente desconheço boa parte dessas expressões inócuas. Só posso dizer que a coerência não é o forte da esquerda, então ela se alinha àquilo que lhe trouxer algum dividendo, como as ditaduras cubana, angolana, venezuelana, chinesa, ou seja, a ditadura ao gosto do freguês.
- Sei que isso é difícil de aferir, mas na sua percepção, qual é grau de apoio popular ao regime?
RAFAEL: Boa pergunta. A verdade é que nem o regime possui esses números, porque uma população aterrorizada por atrocidades cometidas durante décadas jamais revelaria sua reprovação ao governo. Pessoalmente, ouvi críticas de chineses ao regime, sobretudo quanto à falta de liberdade. Por outro lado, a sociedade chinesa está satisfeita com suas conquistas financeiras, e muitos atribuem o feito às ações do governo. Eu diria, isso com certeza, que o apoio popular depende de uma condição econômica favorável.
A China precisa de outros mercados, territórios e exploração internacional para manter a economia forte e o apoio popular ao regime
- Você reconhece que, nas grandes cidades, a renda média do cidadão chinês é elevada, e que os serviços e a infraestrutura são muito melhores que no Brasil. Como explicar o atraso brasileiro em relação à China?
RAFAEL: Eu queria complementar sua pergunta, posso? Como explicar o atraso da América do Sul em relação ao resto do mundo? O subcontinente americano está cada vez mais descolado do desenvolvimento mundial. China, Singapura, Taiwan, Malásia, Coreia do Sul, enfim, várias nações asiáticas estão alcançando padrões de vida europeus. Claro que há diferença na qualidade de vida entre as diferentes regiões chinesas, algumas delas ainda empobrecidas. Mas o Brasil e a América do Sul se tornaram há décadas reféns do narcotráfico, do populismo e de máquinas estatais inchadas, incompetentes, inoperantes. No caso do Brasil, a casta superior do setor público constitui uma barreira intransponível para o crescimento do país. Nenhuma país jamais alcançou o desenvolvimento mantendo um funcionalismo público caro, ineficiente e com estabilidade nos cargos. Isso é uma jabuticaba apodrecida.
- Na sua avaliação, quais são os planos e a estratégia do regime chinês em termos de expansionismo internacional? De que forma o 5G e o Brasil se encaixam nesse plano?
RAFAEL: Historicamente, a China nunca aplicou nenhuma ação expansionista. Durante milênios a China priorizou o comércio, a conquista de rotas comerciais e de domínios de mercados, mas jamais se lançou a uma expansão territorial. Tudo mudou nos últimos anos, principalmente após a ascensão do grupo liderado por Xi Jinping [presidente da China desde 2013]. A China precisa de outros mercados, territórios e exploração internacional para manter a economia forte e, portanto, o apoio popular ao regime. As diferentes tecnologias, entre elas o 5G, assim como plataformas supostamente inocentes, como Tik Tok e Kwai, são fundamentais para manter a espionagem chinesa no mundo todo. Quem controla essas ferramentas controla a informação. E quem controla a informação se posiciona em um posto altamente vantajoso em relação aos seus competidores e oponentes.
- Você enxerga alguma possibilidade de abertura e democratização do regime, a médio e longo prazos? Ou a tendência é piorar?
RAFAEL: Vamos esclarecer o primeiro ponto: não é possível democratizar um regime comunista de matriz marxista-leninista. Qualquer regime que impõe sua fundamentação ideológica acima da natureza humana precisa ser necessariamente totalitário. A própria Constituição chinesa define o regime como uma ditadura democrática. Você entendeu? Não? Nem eu [risos]. A tendência é piorar, com certeza. Já está piorando, com as novas tecnologias, aplicadas para criar o programa de crédito social, um pesadelo em vigor, capaz de tornar o Big Brother da versão orwelliana um ensaio de crianças pueris. O aumento do autoritarismo se faz necessário para controlar uma população cada vez mais bem informada. A Nova Era, como foi batizada a era de Xi Jinping, será a mais atroz desde os anos maoístas. Mas a História é cíclica: o aumento do terror contra uma população abre espaço para a queda dos tiranos. Os próximos anos serão decisivos.
Vitória total de Trump impõe duro recado a Lula e à esquerda brasileira
Aliados de Lula choram vitória de Trump “Tempos difíceis”. Acompanhe o Sem Rodeios
Trump vence eleições presidenciais dos EUA; confira os resultados detalhados
Você conhece alguém desesperado com a vitória de Trump? Esta coluna é para você