• Carregando...
Choque de civilizações
| Foto: Reprodução Instagram

Em 1993 o cientista político Samuel P.Huntington publicou na revista Foreign Affairs o artigo “The clash of civilizations”, mais tarde transformado em livro. Sua tese era que, no mundo pós-Guerra Fria, as identidades culturais e religiosas dos povos - e não mais as diferenças ideológicas - se tornariam a fonte principal dos conflitos armados no planeta.

O artigo foi interpretado como uma resposta pessimista à tese otimista do livro O fim da História e o último homem, de Francis Fukuyama, publicado no ano anterior, segundo o qual a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União Soviética representavam a consolidação da democracia liberal capitalista como o estágio final da História. Era muito mais que isso.

Em todo caso o tempo, como está ficando cada vez mais claro, deu razão ao pessimismo de Huntington, não ao otimismo de Fukuyama. O que apresento a seguir é um resumo das ideias expostas no capítulo “Islã e Ocidente”, de “Choque de civilizações”, hoje infelizmente fora de catálogo. Vale lembrar que o livro não se limita a este tema.

Huntington (1927-2008) começa contestando a narrativa, ainda hoje muito disseminada, de que o problema do Ocidente judaico-cristão não é com o Islã, mas apenas com o extremismo fundamentalista e violento: 1.400 anos de História, ele afirma, provam o contrário. Os dois modelos civilizacionais sempre estiveram engajados em um combate mortal por “poder, terras e almas”:

“O conflito do século 20 entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo é apenas um fenômeno histórico fugaz e superficial, se comparado à relação continuada e profundamente conflitiva entre o Islamismo e o Cristianismo” , escreve Huntington.

“As causas desse padrão ininterrupto de conflitos não estão em fenômenos transitórios como o fervor cristão do século 12 ou o fundamentalismo muçulmano do século 20. Elas decorrem da natureza dessas duas religiões e das civilizações nelas baseadas. (...) Desde suas origens, o Islamismo se expandiu pela conquista e, quando surgiram oportunidades, o mesmo se deu com o Cristianismo”.

O primeiro capítulo desse combate se deu já no século 7 d.C., quando o Islã iniciou sua expansão para o norte da África, a Península Ibérica, o Oriente Médio, a Pérsia (atual Irã) e o norte da Índia. Somente depois de dois séculos os cristãos começaram a reagir, com as primeiras Cruzadas e a reconquista de alguns territórios no Mediterrâneo ocidental, como a Sicília. Por outro lado, entraram em cena os turcos otomanos, também muçulmanos, que capturaram Constantinopla em 1453 e sitiaram Viena em 1529.

O Islã é hoje mais Islã do que nunca, mas a Europa e o Ocidente, como Huntington suspeitou, já não são mais os mesmos

A Península Ibérica só seria totalmente recuperada em 1492. E a segunda tentativa fracassada dos otomanos de sitiar Viena, que marcou o começo de uma longa retirada muçulmana, só aconteceu em 1683.

Ou seja, durante 1.000 anos, desde o primeiro desembarque mouro da Espanha, a Europa esteve sob a ameaça ou a ocupação constante do Islã. A rigor, nada impede que isso volte a acontecer.

Tornando curta uma História longa: no século 20, com o fim da Primeira Guerra e a derrocada do Império Otomano, as potências europeias impuseram seu domínio a boa parte das antigas terras otomanas. Por volta de 1920, apenas quatro países muçulmanos preservavam sua autonomia: Turquia, Arábia Saudita, Irã e Afeganistão.

Começou então o processo de descolonização, acelerado após a Segunda Guerra, que levou à independência dezenas de sociedades muçulmanas, o mesmo se dando após o colapso da União Soviética em 1991.

Tudo isso provocou um verdadeiro Renascimento islâmico. Em 1995, já havia no mundo mais de 45 Estados independentes de população majoritariamente muçulmana. E hoje o Islamismo é a religião que mais cresce no planeta.

Lembrando que Choque de civilizações foi escrito antes dos monstruosos ataques de 11 de setembro de 2001, Huntington lista uma série de fatores que levariam à intensificação do conflito entre o Ocidente e o Islã:

- Primeiro, o crescimento populacional muçulmano - com taxas de natalidade muito superiores às do Ocidente - gerou uma enorme quantidade de jovens desempregados e descontentes, que estavam sendo recrutados pela causa fundamentalista islâmica e migrando para o Ocidente;

- Segundo, o Renascimento islâmico deu aos muçulmanos uma confiança renovada no caráter superior de sua civilização e de seus valores, se comparados aos do Ocidente;

- Terceiro, os esforços do Ocidente de universalizar seus valores e instituições, manter sua superioridade econômica e militar e intervir nos conflitos do mundo muçulmano provocaram um intenso ressentimento entre as populações islâmicas;

- Quarto, o colapso do comunismo acabou com um inimigo comum do Ocidente e do Islã, fazendo com que cada um se tornasse a ameaça percebida do outro;

- Quinto, os crescentes contatos e interações entre muçulmanos e ocidentais estimulam em cada lado uma nova percepção das diferenças entre as respectivas identidades. Isso exacerbou os conflitos relacionados aos direitos dos membros de uma civilização que vivem em países dominados por membros de outra civilização.

Cada vez menos comprometido com os valores da civilização judaico-cristã, o Ocidente está perdendo essa guerra por dentro

Em relação ao quinto fator, o que aconteceu de novo desde a publicação do livro foi o movimento de abertura da Europa à imigração muçulmana, enquanto a intolerância do Islã em relação ao Ocidente só aumentou. Ou seja, os países ocidentais importaram para dentro de casa o conflito que pode levar à sua destruição.

Huntington continua:

“As causas dos renovados conflitos entre o Islã e o Ocidente residem assim nas questões fundamentais de poder e cultura. Quem vai dominar? Quem vai ser dominado? A questão fundamental da política, definida por Lênin, é a raiz do confronto entre o Islã e o Ocidente. (...)

“Enquanto o Islã continuar sendo o Islã (como continuará) e o Ocidente continuar sendo o Ocidente (o que é mais duvidoso), esse conflito fundamental entre duas grandes civilizações e estilos de vida continuará a definir suas relações no futuro do mesmo modo como as definiu durante os últimos 14 séculos.”

Pois bem, o Islã é hoje mais Islã do que nunca, mas a Europa e o Ocidente, como Huntington suspeitou, já não são mais os mesmos. Cada vez menos comprometido com os valores da civilização judaico-cristã que o formaram, o Ocidente está, por assim dizer, perdendo essa guerra por dentro.

O conflito em curso em Gaza, um conflito civilizacional entre uma democracia e uma teocracia (provocado por um selvagem ataque terrorista do Hamas, sempre é bom lembrar), pode ser apenas um laboratório para uma reordenação radical do mundo.

Huntington conclui resumindo os ingredientes básicos que tornam inevitável a guerra entre o Islã e o Ocidente:

“O problema subjacente para o Ocidente não é o fundamentalismo islâmico. É o Islã, uma civilização diferente, cujas pessoas estão convencidas da superioridade de sua cultura e obcecadas com a inferioridade de seu poderio. O problema para o Islã não é a CIA ou o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. É o Ocidente, uma civilização diferente cujas pessoas estão convencidas da universalidade de sua cultura e acreditam que seu poderio superior, mesmo que em declínio, lhes impõe a obrigação de estender sua cultura por todo o mundo.”

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]