Idealizado pelo general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército Brasileiro de 2015 a 2019, o projeto “Coleções Pensadores do Brasil” já começa a ganhar forma. O objetivo é trazer de volta ao debate público 200 obras fundamentais para se entender o Brasil, quase todas fora de catálogo, confrontando ideias de autores de diferentes matizes ideológicos, de Golbery do Couto e Silva e Miguel Reale a Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Celso Furtado. Os livros serão publicados com recursos do MEC e distribuídos gratuitamente em universidades e bibliotecas.
O projeto já faz parte das celebrações pelo Bicentenário da Independência, em 2022. Os primeiros quatro volumes estão prontos:
- “Organização Nacional”, de Alberto Torres, com prefácio do professor Carlos Ivan Simonsen;
- “Geopolítica e Poder”, de Golbery do Couto e Silva, com prefácio do general Alberto Mendes Cardoso;
- “A Missão Rondon e a Expedição Roosevelt”, com o prefácio do indigenista Mercio Pereira Gomes; e
- “A Amazônia e a Cobiça Internacional”, de Arthur Cezar Ferreira Reis, com prefácio do general Villas Bôas.
Villas Bôas, que sofre de esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença neuromotora, criou recentemente o IGVB – Instituto General Villas Bôas para apoiar pessoas com doenças raras, crônicas e com deficiência. O objetivo do instituto é “disseminar informações para o acesso às chamadas tecnologias assistivas, que ajudam a manter ativas as pessoas que têm doenças semelhantes”. Com o auxílio de um computador adaptado, Villas Bôas respondeu por escrito a perguntas sobre o projeto.
O IVGB tem um conselho editorial formado por intelectuais responsáveis pela seleção dos títulos da coleção. Segundo o diretor do Instituto, general Marco Aurélio Costa Vieira, as coleções não terão amarras ideológicas, publicando autores das várias áreas do pensamento, sem conotação político-partidária.
- Como nasceu o projeto das coleções de livros “Pensadores do Brasil”?
GENERAL EDUARDO VILLAS BÔAS: Há muito que vem preocupando a consolidação de um pensamento único na educação e na cultura brasileira, especialmente nos últimos 30 anos. Quando passei o comando do Exército, iniciei um ciclo de diálogos com amigos militares e intelectuais civis, quase todos professores universitários, buscando entender a atual realidade cultural e, assim, criar um projeto estratégico de nação e, dentro dele, um projeto estratégico de educação e cultura.
O que mais preocupa é que perdemos nossas raízes culturais, perdemos os conceitos de Nação e de Povo Brasileiro, não sabemos mais quem somos, de onde viemos nem para onde vamos. Foi a partir daí que nasceu a ideia de aproveitar as celebrações do Bicentenário da Independência para lançar uma série de coleções de obras referência, com a finalidade de estimular o debate intelectual junto a toda a sociedade. Pois existe um povo cujos corações precisam ser reconquistados, uma nação que precisa ser compreendida, uma cultura nacional que precisa ser desvelada e uma democracia que precisa ser praticada.
- Fale sobre o viés nacionalista do projeto.
VILLAS BÔAS: Nossa inspiração vem das celebrações do Centenário, em 1922, quando ocorreu a Semana de Arte Moderna, o Movimento Antropofágico na Cultura e o Movimento Tenentista na política. Ambos eram movimentos essencialmente nacionalistas, no sentido de que buscavam compreender as raízes da nação e do povo brasileiro. Um dos bons resultados desses tempos foi o lançamento da Coleção Brasilianas, por Monteiro Lobato, no início da década de 1930.
Buscamos exatamente o mesmo: a redescoberta do Brasil por meio da promoção de novas reflexões acerca da formação cultural e intelectual brasileira, de modo a abrir espaço para retomar a ideia do papel revolucionário da Educação como fator indispensável para se construir um país menos desigual e mais democrático, da mesma forma que os intelectuais brasileiros assim também entenderam ser importante em 1922. Assim, o projeto das Coleções quer redescobrir o Brasil por meio do nacionalismo e da antropofagia cultural.
- Como foi feita a seleção dos 200 títulos? Quais foram os critérios?
VILLAS BÔAS: As coleções e os livros ainda serão escolhidos pelo Conselho Editorial, formado por militares e por professores doutores de notório saber nos temas abordados. A meta é que o Conselho escolha 20 coleções temáticas e, dentro de cada uma delas, decida quais as 10 obras mais representativas de cada tema já publicadas no Brasil.
Mas essas metas são indicativas, não dogmáticas. Pode haver coleções com mais de 10 obras, ou com menos. Será uma decisão do Conselho Editorial, que por enquanto só se decidiu por três coleções, mas não ainda quais obras serão incluídas em cada uma. É importante explicar que o projeto terá duas etapas. Na primeira, financiada pelo Ministério da Educação, vamos lançar 100 obras em 24 meses, em um ritmo de quatro a seis novos livros por mês. Na segunda etapa, a partir de 2023, mais 100 obras, até completarmos 200.
“O que vale para Florestan Fernandes vale para Miguel Reale. Então que a esquerda não venha reclamar de Golbery, nem a direita reclamar de Darcy”
- Poderia citar outros temas das coleções, além dos três já anunciados [Amazônia, Fundamentos do Pensamento Estratégico Nacional e Pensamento Econômico Brasileiro]?
VILLAS BÔAS: O Conselho Editorial ainda vai tomar essa decisão, mas obviamente há vários temas previamente ventilados, como Pensamento Político Brasileiro e a Coleção Independência. E, ainda, duas coleções seminais, sobre a construção da Nação Brasileira e sobre a Formação do Povo Brasileiro, entre muitas outras. Os conselheiros já sugeriram 26 diferentes coleções temáticas e quase 80 livros referência, que há muito estão fora das livrarias. Acredito que os debates prometem ser extremamente interessantes.
- Qual será a estratégia de distribuição dessas coleções? Há um plano de distribuição para escolas e universidades públicas, por exemplo? Os livros também serão vendidos comercialmente, em livrarias? Qual é a tiragem média planejada? Os livros também estarão disponíveis em versão digital?
VILLAS BÔAS: Os livros impressos serão distribuídos, prioritariamente, para as bibliotecas das universidades públicas, institutos culturais e para as principais escolas do ensino médio a serem indicadas pelo Ministério da Educação, principal patrocinador do projeto. Também é essencial que cheguem aos professores que lidam diretamente com as disciplinas que relacionadas às temáticas. A tiragem inicial de cada obra será pequena, 3.000 exemplares, mas o suficiente para iniciarmos a difusão do conteúdo por meio de cursos e programas de televisão. O plano é distribuir 2.000 exemplares impressos para as bibliotecas indicadas pelo MEC e 1.000 exemplares, também gratuitos, para os professores que solicitarem no site da Coleção. A versão digital será disponibilizada pelo site para o público. Essas coleções não poderão ser vendidas em livrarias, pois serão patrocinadas pelo Ministério da Educação.
- O fato de o General Golbery, um dos primeiros autores anunciados, ser associado ao regime militar não pode criar uma resistência à coleção, em determinados meios?
VILLAS BÔAS: Decidimos publicar Golbery, mas podemos publicar também Darcy Ribeiro. Golbery é um autor referência para o estudo do Pensamento Estratégico Brasileiro, da mesma forma que outros como José Bonifácio, o general Góis Monteiro ou o general Meira Mattos. Darcy, por sua vez, é essencial para compreender a formação do Povo Brasileiro, da mesma forma que outros autores com viés de esquerda como Gilberto Freyre ou, ainda, conservadores como Oliveira Viana. São autores que ainda precisam passar pelo Conselho no momento certo. Esse projeto é político, como já dito, pois tem por objetivo aproveitar as celebrações dos 200 anos da Independência para buscar a redescoberta cultural do Brasil. Mas está longe de ser um projeto ideológico, ou partidário. É, sim, um Projeto Estratégico de Cultura.
- Que comparação o senhor faria entre a coleção “Pensadores do Brasil” e duas outras coleções famosas, a Brasiliana, de Monteiro Lobato, e Coleção Humanidades, da Editora UnB?
VILLAS BÔAS: De fato, as Coleções Pensadores do Brasil são inspiradas em três grandes projetos editorias históricos. O primeiro é a Coleção Brasilianas, idealizada por Monteiro Lobato. Sua editora, a Companhia Editora Nacional, lançou 415 obras sobre o Brasil ao longo de 50 anos, entre 1931 e 1981. Outro, a Coleção Reconquista do Brasil, iniciado na década de 1970 pela Editora Itatiaia em conjunto com a Edusp. Por fim, na década de 1980, a Coleção Humanidades, da Editora Universidade de Brasília, que publicou mais de 300 obras de referência sobre Filosofia e Política, assim como alguns dos melhores autores brasileiros contemporâneos nos campos das Ciências Humanas. Esses três marcos editoriais alcançaram seus objetivos, despertaram a vontade de ler nos estudantes e disseminaram ideias e ideais. Que consigamos o mesmo.
- O senhor acredita que essa coleção terá boa receptividade na grande mídia e nas universidades, considerando que são ambientes hoje dominados pela esquerda? Pode haver críticas de teor ideológico às obras lançadas?
VILLAS BÔAS: Acredito sim que as coleções terão muito boa receptividade, não só no meio acadêmico como junto à grande mídia. Primeiramente, porque são obras clássicas consagradas e que trazem em seu bojo um ideário importante e significativo do ambiente intelectual brasileiro. Em segundo lugar, porque hoje são títulos raros de se encontrar nas bibliotecas, nas livrarias e mesmo nos sebos, visto que não são obras que tenham sido editadas com frequência, nestes últimos 50 anos. E por último e não menos importante, porque nos dias de hoje os estudos e as pesquisas dos temas abordados por esses autores estão carecendo dessas obras, para fundamentar teses, alimentar o contraditório e fomentar a evolução do pensamento intelectual brasileiro.
“Fernando Henrique Cardoso tem DNA de militar, apesar de por vezes agir como um rebelde. É um grande erro pensar que ele seja marxista”
- Complementando a questão anterior: é público e notório que o pensamento de esquerda domina a universidade brasileira, pública e privada. A que o senhor atribui esse fenômeno?
VILLAS BÔAS: Este é um fenômeno que não é exclusivo do Brasil. Assim como a imprensa do mundo todo tem um viés predominante de esquerda, também a Academia, na grande maioria dos países ocidentais, é mais progressista que conservadora, se é que se pode rotular assim o que você está chamando de “pensamento”. Na verdade, isso é resultado de um movimento intelectual que se internacionalizou, e mesmo se “glamurizou”, ao longo de todo o século 20, com base em princípios de filósofos de esquerda, como Gramsci, Sartre e Chomsky, para citar apenas alguns.
Ao longo dos últimos 100 anos, as bandeiras de esquerda se mostraram muito atrativas para estudantes, artistas e intelectuais; baseadas em um romantismo utópico e em um pragmatismo ineficiente, elas ganharam o campo das ideias de forma aguerrida e por vezes violenta. Nossa intenção não é desconstruir ideias, mas sim apresentar algumas das outras posições intelectuais de ilustres brasileiros, traduzidas em obras seminais, hoje injustamente esquecidas ou pouco valorizadas.
- As coleções incluirão livros de autores de esquerda, como Caio Prado Jr e Florestan Fernandes?
VILLAS BÔAS: A ideia é publicar as principais obras referência dos últimos 200 anos, independente da opção ideológica de seus autores. Ainda não dá para saber ser Prado e Florestan, especificamente, serão republicados, pois a decisão será do Conselho Editorial. Ou se vamos publicar Plínio Salgado e Miguel Reale, por exemplo, autores referência do Integralismo. Pode ser que sim, se o Conselho avaliar a relevância de alguma de suas obras específicas.
O Conselho já debateu sobre a obra “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, que no momento está em catálogo de sua editora. Mas um de nossos membros já contatou a família para que cedesse ensaios inéditos de Freyre. Assim, o que vale para Freyre vale para Florestan, Plínio Salgado e Miguel Reale ou para quaisquer outros. Então que a esquerda não venha reclamar de Golbery, nem a direita reclamar de Darcy.
- As coleções incluirão obras de autores vivos, como, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso?
VILLAS BÔAS: Insisto em reafirmar que o Conselho decidirá sobre as principais obras referência dos últimos 200 anos do Brasil. Se por acaso decidir por alguma das obras do professor Fernando Henrique, ou do Pedro Malan, ou ainda do Olavo de Carvalho, vamos procurá-los para solicitar autorização. Mas a tendência é a redescoberta de obras e autores relevantes há muito esquecidos pelas editoras e pelas universidades. No caso dos três acima citados, suas obras estão em ofertas nas livrarias e não precisam da nossa ajuda.
Sobre o professor Fernando Henrique, lembro que ele é filho de um dos mais respeitados militares brasileiros, o general Leônidas Cardoso, e neto de outro líder militar, o general Joaquim Inácio Cardoso. Fernando Henrique tem DNA de militar, apesar de por vezes agir como um rebelde. Além disso, é um grande erro pensar que ele seja marxista. Na verdade, ele é maxista, pois é discípulo de Max Weber. Se o Conselho decidir por alguma obra dele, será muito bem-vinda.
- O que o senhor acha que pode ser feito para estimular o hábito da leitura no Brasil, de forma que esses livros sejam efetivamente lidos, sobretudo pelos leitores mais jovens?
VILLAS BÔAS: Nossa intenção é exatamente esta, apresentar e tornar acessível aos jovens estudantes, aos acadêmicos e mesmo o público em geral autores e livros que construíram a identidade do Brasil, que nos fizeram crescer como nação, nos diversos campos do conhecimento humano. Considerando que o nosso público alvo hoje tem maior afinidade com os meios digitais, o projeto prevê a divulgação e a difusão pelas redes sociais de todos os livros, com a transmissão de um programa de televisão dedicado aos temas, prefaciadores e autores, assim como o site “Pensadores do Brasil”, onde vamos encontrar inclusive orientações para a leitura e as resenhas de cada obra. Acreditamos que a disponibilização das obras gratuitamente, além de cursos e seminários destinados a debater ideias e autores, também vão reforçar o estímulo à leitura e ao conhecimento dos temas propostos.
- O que pode ser feito para que os estudantes aprendam diferentes visões sobre o mundo e a História, e para que as salas de aula deixem de ser locais de doutrinação de uma única ideologia e do pensamento único de esquerda?
VILLAS BÔAS: O melhor antídoto contra a ignorância do radicalismo unilateral é a leitura. Visões diferentes de qualquer assunto são privilégio de quem lê, de quem se informa, de quem se permite as visões de outros lados de uma questão. Diversidade de ideias e debate são fundamentais para uma educação que busque a consciência crítica, e hoje são conquistas democráticas que devem ser cultivadas desde o berço dos bancos escolares.
- Como o senhor avalia os primeiros dois anos do Governo Bolsonaro, no que tange à relação do presidente com as Forças Armadas?VILLAS BÔAS: Este não é o tema da nossa conversa... Estamos falando de livros. Permita-me não responder.
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