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Um astronauta marciano que, ao enfrentar uma pane em seu foguete interplanetário e, por azar, caísse no Brasil, teria as seguintes considerações a fazer sobre a democracia no país, após uma semana acompanhando atentamente o noticiário.
A direita e os conservadores não representam interesses aceitáveis e legítimos. Mesmo que seja metade da população, a parcela da sociedade que se define como de direita ou conservadora representa uma ameaça à democracia e merece ser extirpada.
Isso deixou o marciano intrigado: se metade da população votou no candidato identificado com a direita conservadora na última eleição, o que fazer com essa gente toda? Não dá para colocar todo o mundo na prisão.
Depois de estudar muito, o marciano concluiu que a estratégia adotada pelos defensores da democracia foi incutir um sentimento de medo na metade da população que teima em ser de direita – aquela gente fascista que defende a família, combate as drogas e é contra o aborto.
Como só é democrata de verdade quem apoia o partido no poder, pensou o marciano, as dezenas de milhões de brasileiros antidemocráticos precisam ser estigmatizadas – como fascistas e de “extrema” direita – e silenciadas por meio da intimidação, do constrangimento e de ameaças veladas (ou não tão veladas).
Protesto nas ruas, nem pensar: se tiver quebra-quebra então, pode render 17 anos de prisão. A não ser que o quebra-quebra seja contra uma privatização em um estado governado pela oposição, por exemplo, ou para defender a invasão, digo, a ocupação de terras ou imóveis. Aí tudo bem.
Ou seja, tem quebra-quebra do bem e quebra-quebra do mal, pensou o marciano. Tudo na democracia, aliás, tem "do bem" e tem "do mal", inclusive o ódio. Se for do bem, tudo bem.
“E escrever o que eu penso nas redes sociais, eu posso?”, perguntou o marciano, que tinha acabado de criar uma conta no “X-antigo-Twitter”.
“Marciano, presta atenção”, respondeu um brasileiro antenado com os parangolés da nova democracia. “As pessoas são livres para dizer o que pensam e dar a opinião que quiserem, desde que pensem da forma correta e deem as opiniões certas."
"Como assim?", perguntou o marciano.
"É que tem muito discurso de ódio e fake news rolando nas redes, então é preciso tomar cuidado para não ser perseguido, esfolado e cancelado, ou mesmo para não bloquearem sua conta bancária e seu passaporte, como acontece ainda hoje com alguns jornalistas. Mas são exceções."
“Mas opinião é crime?"
"Depende. Mas em breve você nem vai precisar se preocupar com isso, porque com a regulação das redes sociais só será permitido dizer o que for democrático e socialmente justo. Para sua própria proteção, qualquer postagem suspeita de ameaça ao Estado de direito será imediatamente excluída. Até porque o Zuckerberg e o Elon Musk não vão querer ficar recebendo diariamente multas de milhões de reais cada vez que um fascista postar algo inadequado ou usar o pronome errado em suas postagens.”
Só se alcança uma democracia verdadeiramente inclusiva excluindo quem discorda, mesmo que seja a maioria, e disseminando o ódio recíproco entre os milhares de grupos criados
O marciano entendeu que, para silenciar metade da população, a estratégia mais eficaz foi relativizar o que até outro dia era considerado uma cláusula pétrea da Constituição: a liberdade de expressão.
Na nova e relativa democracia, constatou o marciano de passagem pelo Brasil, qualquer coisa que alguém diga pode ser interpretada como fake news, discurso de ódio e ameaça ao Estado de Direito. Somente assim acabaremos com o fascismo.
Mas o marciano também concluiu que isso só vale para a metade da população que ainda não entendeu como funciona a nova democracia. Para aqueles que apoiam o partido no poder, por exemplo, a liberdade de expressão continua valendo.
Outra constatação do marciano curioso sobre a democracia brasileira: é preciso impedir a qualquer custo que um candidato que representa os interesses da direita conservadora volte a concorrer à Presidência.
Parece que a última eleição foi muito estressante para os verdadeiros democratas: mesmo com a volta temporária e excepcionalíssima da censura prévia; mesmo com o apoio declarado e incondicional da grande mídia; e mesmo com a parcialidade explícita da entidade responsável por garantir a lisura do pleito, mesmo com tudo isso, o candidato da democracia quase perdeu! E há quem diga que... Deixa pra lá.
Este risco não pode se repetir, em hipótese alguma, concluiu o marciano. A democracia brasileira não pode mais passar por esses sobressaltos. Até que o brasileiro aprenda a votar, só poderá concorrer nas eleições quem estiver do mesmo lado, simples assim. Parece que isso deu certo em democracia sólidas, como a venezuelana, ouviu dizer o marciano.
Cada vez mais intrigado, o marciano perguntou a um comentarista político de um importante canal de TV – que, segundo alguns, se tornou uma espécie de assessoria de comunicação informal do Governo – se a nova democracia é contrária à alternância no poder.
“Claro que não”, o analista respondeu ao marciano, em tom complacente. “Nossa democracia é pluralista: nela há lugar para a esquerda, para os progressistas e até mesmo para o centro! Infelizmente ainda não dá pra excluir o centro, porque precisamos dos votos dos parlamentares fisiológicos do Congresso para aprovar os nossos interesses. Ainda não dá para resolver tudo no Supremo. Mas a democracia se aprimora a cada dia, em breve chegaremos lá.”
“Mas e a direita? E os conservadores?”, insistiu o marciano. “Ah, você quer dizer os fascistas? Para estes não há espaço na democracia”, respondeu o comentarista político, com ar de superioridade moral, dando de ombros e virando as costas.
A última conclusão do turista acidental que veio de Marte: na democracia, os direitos das minorias prevalecem sobre os direitos das maiorias. A premissa de que todos são iguais perante a lei, ele pensou, é letra morta.
Ao contrário, é preciso estimular a multiplicação de grupos identitários os mais diversos, distribuindo direitos conflitantes, mesmo que esses grupos entrem em choque entre si, e mesmo que preguem a tolerância mas pratiquem diariamente a perseguição, o ódio e a intolerância.
Porque só se alcança uma democracia verdadeiramente inclusiva excluindo quem discorda, mesmo que sejam dezenas de milhões, e disseminando o ódio recíproco entre os diferentes grupos criados, cada qual se vitimizando mais que o outro. Isso porque o Brasil é um único país, e os brasileiros são um só povo.
Não entendeu? O marciano também não. Ele teria outras conclusões a tirar sobre a democracia, mas nessa altura já tinham consertado seu o foguete, e ele partiu de volta para Marte.
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