A escalada da insensatez piora a cada dia, e como a memória dos brasileiros é curta vale a pena recapitular alguns momentos marcantes da nossa História recente, para não perder o senso de encadeamento necessário para se entender como chegamos até aqui.
A primeira parte desta cronologia recapitula o debate e a aprovação pelo Congresso Nacional, em 2009 e 2015, de duas leis que estabeleciam o mecanismo de impressão do voto acoplado às urnas eletrônicas – com o argumento de aumento da transparência e do controle do processo eleitoral. Na época, este argumento não era considerado um ataque à democracia.
O olhar retrospectivo serve, também e justamente, para mostrar como, em muito pouco tempo, uma proposta destinada a aprimorar as eleições passou a ser vista e vendida como uma ameaça às instituições – inclusive por políticos e jornalistas que a apoiaram, no passado.
Serve, por fim, para explicitar a má-fé daqueles que afirmam que se pretende retroagir a um passado distante, quando só existiam votos impressos e contagem manual. Ora, mesmo este argumento parece desconsiderar o fato de que na maior democracia do mundo, os Estados Unidos, o voto é majoritariamente impresso, com contagem manual.
Mas a proposta nunca foi esta, isso é apenas uma mentira: o que sempre se defendeu foi um comprovante impresso do voto, vinculado às urnas eletrônicas, o que tornaria o processo inteiro mais confiável. Mas, em democracias relativas, a desonestidade é muitas vezes um método.
A cronologia foi inspirada por um vídeo postado no Youtube pelo jornalista Fernão Lara Mesquita, e todos os textos transcritos abaixo foram originalmente publicados por fontes, por assim dizer, insuspeitas.
1
Em setembro de 2009, com relatoria de um deputado do PcdoB, o Congresso Nacional aprovou uma minirreforma eleitoral que estabelecia a impressão dos votos registrados nas urnas eletrônicas. Segundo matéria de 2014, disponível da Agência Senado:
“A falta de uma comprovação física do voto e a possibilidade de falhas nas urnas eletrônicas, além de fraudes, foram problemas apontados por especialistas em segurança digital ouvidos em audiência pública promovida em 2013 pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) do Senado. O Brasil ainda utiliza equipamento de primeira geração, enquanto já existe a terceira, que permite a impressão e a auditoria de todos os votos contabilizados.
“O voto impresso foi aprovado pelo Congresso Nacional em setembro de 2009, na chamada minirreforma eleitoral. De acordo com o texto da Lei 12.034, a partir das eleições de 2014, a urna eletrônica deveria exibir as telas referentes aos votos digitados e, após a confirmação do eleitor, a máquina imprimiria um número único de identificação do voto associado à sua própria assinatura digital.”
Fonte: Senado Federal
2
Em outubro de 2011, o STF suspendeu a aplicação do voto impresso vinculado às urnas eletrônicas nas eleições de 2014, até que fosse julgada uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR):
“Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) concederam nesta quarta-feira (19) uma medida cautelar que suspende, até o julgamento de mérito, a aplicação do voto impresso nas eleições de 2014. O voto impresso foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio da Lei nº 12.034/2009, conhecida como minirreforma eleitoral.
"A decisão do STF, unânime, ocorreu na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4543, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR). O principal argumento da PGR é no sentido de que a impressão do voto fere o artigo 14 da Constituição, que garante o voto secreto.”
Fonte: TSE – Tribunal Superior Eleitoral
3
Em novembro de 2013, o STF anulou o Artigo 5º da Lei 12.034, que tratava do voto impresso a partir das eleições de 2014:
“O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei 12.034/2009, que cria o voto impresso a partir das eleições de 2014. Na sessão plenária realizada nesta quarta-feira (6), os ministros confirmaram, em definitivo, liminar concedida pela Corte em outubro de 2011, na qual foram suspensos os efeitos do dispositivo. (...)
"A ministra Carmen Lúcia, relatora da ADI, votou pela procedência da ação, e seu entendimento foi acompanhado por unanimidade. A ministra reafirmou os fundamentos apresentados no julgamento da liminar, quando o Plenário entendeu que o dispositivo contestado compromete o sigilo e a inviolabilidade do voto assegurada pelo artigo 14 da Constituição Federal.
"O artigo 5º da Lei 12.034/2009 – que altera as Leis 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos), 9.504/1997 (Lei Eleitoral) e 4.737/1965 (Código Eleitoral) – cria, a partir das eleições de 2014, 'o voto impresso conferido pelo eleitor, garantido o total sigilo do voto', mediante as regras que estabelece. O parágrafo 2º dispõe que, 'após a confirmação final do voto pelo eleitor, a urna eletrônica imprimirá um número único de identificação do voto associado a sua própria assinatura digital'. Por fim, o parágrafo 5º permite o uso de identificação do eleitor por sua biometria ou pela digitação do seu nome ou número de eleitor, 'desde que a máquina de identificar não tenha nenhuma conexão com a urna eletrônica'.
“ 'O segredo do voto foi conquista impossível de retroação', afirmou a ministra. 'A quebra desse direito fundamental – posto no sistema constitucional a partir da liberdade de escolha feita pelo cidadão, a partir do artigo 14 – configura afronta à Constituição, e a impressão do voto fere, exatamente, esse direito'. Eventual vulneração do segredo do voto, conforme destacou a ministra, também comprometeria o inciso II do parágrafo 4º do artigo 60 da CF – cláusula pétrea – o qual dispõe que o voto direto, secreto, universal e periódico não pode ser abolido por proposta de emenda constitucional.”
Fonte: STF – Supremo Tribunal Federal
4
Em dezembro de 2015, o Congresso Nacional aprovou novo projeto de lei que estabelecia um mecanismo de voto impresso acoplado à urna eletrônica, o PLC 75/2015. Como o TSE argumentou, na época, que a implementação do mecanismo ficaria muito cara, essa parte do projeto foi vetada pela então presidente Dilma Rousseff. Mas o veto foi derrubado pelo Congresso em dezembro do mesmo ano, com os votos de 368 deputados e 56 senadores, e a Lei 13.165 foi aprovada, instituindo o voto impresso a partir das eleições de 2018:
“Nas próximas eleições para presidente, governadores, senadores e deputados, em 2018, a votação continuará sendo eletrônica, mas os votos serão impressos. Essa modalidade de comprovação da votação foi aprovada duas vezes pelo Congresso Nacional — uma quando da reforma política e outra quando derrubou o veto da presidente Dilma Rousseff. (...)
"Quando a proposta chegou ao Plenário do Senado, em setembro, um grupo de senadores, capitaneado por Aécio Neves (PSDB-MG), propôs a retomada da impressão do voto. Aécio disse ser importante que o processo de votação não fosse concluído até o momento em que o eleitor pudesse checar se o registro impresso é igual ao mostrado na urna eletrônica.
"— É um avanço considerável e não traz absolutamente nenhum retrocesso. Trará tranquilidade à sociedade brasileira. E acho mais ainda: a própria Justiça Eleitoral deveria compreender isso como um avanço em favor de uma transparência cada vez maior dos pleitos — declarou Aécio.
"A maioria dos senadores apoiou a emenda apresentada por Aécio e, quando o PLC 75/2015 voltou para a Câmara, os deputados decidiram manter a impressão do voto. Só que a presidente Dilma Rousseff fez avaliação distinta. Ela ouviu do TSE que a impressão custaria R$ 1,8 bilhão e vetou essa parte do projeto da reforma política.
"O veto foi derrubado em dezembro com os votos de 368 deputados e de 56 senadores. Assim, segundo a Lei 13.165/2015, no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado em local lacrado, sem contato manual do eleitor. Ainda de acordo com a legislação, essa regra deve valer nas próximas eleições gerais — em 2018.
"O senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) afirmou que a derrubada do veto recuperou a vontade da Câmara e do Senado. Segundo Cássio, o que se pretende é assegurar ao eleitor uma contraprova do voto dado.
"— A urna eletrônica é, sem dúvida, um avanço, mas não pode ficar estagnada no tempo — afirmou.
"Além de já previsto na legislação, o voto impresso faz parte de uma proposta de emenda constitucional em análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. A PEC 113/2015 estipula que, no processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada votação, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado. A votação só estará concluída depois de o eleitor confirmar se o impresso é igual ao que aparece na tela.
"O relator da proposta na CCJ, Raimundo Lira (PMDB-PB), afirmou que parte expressiva da sociedade prefere a impressão dos votos.
"— Tal confirmação afastará suspeitas e desconfianças hoje existentes e ampliará, de forma expressiva, a legitimidade do voto eletrônico, reforçando nossa democracia e nossas instituições — disse."
Fonte: Senado Federal
5
Em maio de 2018, praticamente às vésperas das eleições, o TCU – Tribunal de Contas da União alertou que não seria possível Carmen contar integralmente com a impressão de votos nas eleições daquele ano, por problemas técnicos no sistema desenvolvido pelo TSE:
“O registro impresso do voto, determinado pela Lei 13.165/2015, não será totalmente implementado nas próximas eleições, marcadas para outubro de 2018. A conclusão vem da análise realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), sob a relatoria do ministro José Mucio Monteiro, nos desdobramentos das ações adotadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para cumprir a determinação legal.
"No ano de 2015, a Lei 13.165 alterou dispositivos da Lei das Eleições (Lei 9504/1997) e determinou que o sistema eleitoral brasileiro passasse a adotar o modelo de urna eletrônica com registro impresso do voto. A mesma norma determinou o emprego dessa novidade já nas eleições deste ano.
"No entanto, o TCU alerta que não seja possível contar integralmente com a impressão de votos no 1º turno das eleições de 2018 devido a problemas surgidos no desenvolvimento desse novo sistema pelo TSE.
"A empresa inicialmente contratada para desenvolver um modelo de urna eletrônica que tivesse tanto a função de urna quanto de impressora não conseguiu concluir um protótipo a tempo de o Tribunal Superior Eleitoral licitar. O órgão, consequentemente, optou por adquirir módulos de impressão que pudessem ser acoplados às urnas existentes. A mudança de modelo atrasou todo o processo de implementação da impressão dos votos, inclusive com o pregão de 2017 tendo sido cancelado."
Fonte: TCU – Tribunal de Contas da União
6
No mês seguinte, junho de 2018, o STF derrubou o voto impresso nas eleições daquele ano:
“O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quarta-feira (6), por oito votos a dois, derrubar o voto impresso nas eleições de 2018, para eventual conferência dos resultados da disputa. A maioria concordou com ação da Procuradoria Geral da República, que apontou que a medida coloca em risco o sigilo do voto.
"Na prática, os ministros decidiram suspender o artigo da minirreforma eleitoral de 2015 (artigo 2ª da lei 13.165/2015), que estabeleceu: 'No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado. (...)'
"A ação foi apresentada em fevereiro pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ela argumentou que eventual trava na impressão acarretaria intervenção de um mesário junto ao eleitor, possibilitando que conhecesse suas escolhas.”
Fonte: G1
7
Por fim, em agosto de 2021, a PEC 135/2019, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), foi derrotada na Câmara dos Deputados. Na época, a deputada argumentou que “a impressão do voto ou o rastro de papel, consubstanciado na materialização do voto eletrônico, é a solução internacionalmente recomendada para que as votações eletrônicas possam ser auditadas de forma independente”. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), enviou a proposta ao plenário para, segundo ele, encerrar de uma vez o assunto.
“O Plenário da Câmara dos Deputados rejeitou, nesta terça feira (10), a PEC do Voto Impresso (PEC 135/2019) Foram 229 votos favoráveis, 218 contrários e uma abstenção. Como não atingiu o mínimo de 308 votos favoráveis, o texto será arquivado.
"A proposta rejeitada, de autoria da deputada Bia Kicis, determinava a impressão de 'cédulas físicas conferíveis pelo eleitor' independentemente do meio empregado para o registro dos votos em eleições, plebiscitos e referendos.
"Após a votação, o presidente da Câmara, Arthur Lira, agradeceu aos deputados pelo comportamento democrático. 'A democracia do Plenário desta Casa deu uma resposta a este assunto e, na Câmara, espero que este assunto esteja definitivamente enterrado', afirmou.”
Fonte: Câmara dos Deputados
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