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A Sociedade Entomológica da América (ESA) e a Sociedade Entomológica do Canadá fizeram um anúncio importante nesta semana: para “evitar preconceitos”, o inseto conhecido como “vespa assassina asiática” trocou de nome. É oficial: agora ele vai se chamar “vespa gigante do norte”.
Quando li a notícia logo cedo, achei que o objetivo da medida era proteger a pobre vespa de bullying. Li que a vespa assassina asiática (uma espécie nativa da Ásia, vejam só) tem como hobby exterminar colônias inteiras de abelhas, e cada vespa carrega veneno suficiente para matar um ser humano. O que é a natureza.
Recentemente, um apicultor espanhol morreu após ser picado, e um idoso precisou ser internado às pressas em Portugal. Mas imagino que muitas vespas assassinas asiáticas nunca fizeram mal a ninguém e já estavam ficando estressadas com a alcunha de assassinas. Aliás, estudos demonstram que o número de vespas que buscaram auxílio psicológico nos últimos anos aumentou muito, inclusive sobrecarregando o SUS.
Outras vespas podem ter matado em legítima defesa, ou mesmo por motivação politica, e aí tem que ver quem foi a vítima. Se era um fascista tinha mais é que morrer mesmo, e a vespa ainda corre o risco de ser elogiada em público por um candidato à presidência, por defender a democracia. Em casos assim, evidentemente, chamar a vespa de assassina é um exagero.
Não, não seria justo chamar todas as vespas de assassinas. Daí o acerto da medida tomada pelas sociedades entomológicas dos Estados Unidos e do Canadá, concluí. E vou além: talvez a medida devesse ser estendida a outras espécies de insetos que são vítimas de bullying, como o bicho-pau malásio, o gafanhoto cor-de-rosa e, particularmente, o diabo chifrudo da nogueira.
Já ia escrever uma carta com a sugestão para a ESA quando percebi que me enganei. A justificativa para a troca de nome da vespa assassina não foi proteger o inseto, mas evitar reforçar um sentimento “anti-asiático” na sociedade norte-americana, especialmente em meio a um “aumento de crimes de ódio e discriminação contra pessoas de ascendência asiática”. Parece que esse aumento foi comprovado por um estudo.
O autor do projeto, Chris Looney, entomologista do Departamento de Agricultura do Estado de Washington, afirmou que seu objetivo foi combater o racismo. Já a presidente da ESA, Jessica Ware, declarou: “Não quero que meus colegas, amigos e familiares asiático-americanos ou das ilhas do Pacífico sejam associados com espécies invasoras ou pragas que possam ser usadas contra eles de maneira negativa”. É muita empatia.
Desde o ano passado, a ESA vem adotando a diretriz de banir nomes de insetos que se referem a grupos étnicos ou raciais ou que possam causar medo, bem como desencorajar nomes que fazem referência a áreas geográficas, especialmente para espécies invasoras. A compulsão para apagar o passado e reescrever a História chegou ao mundo dos insetos.
No Brasil, ataques à liberdade de expressão são feitos sem qualquer cerimônia, com o apoio da grande mídia e até do Poder Judiciário
Vamos lá. Tivesse eu lido essa notícia 10 ou 20 anos atrás, minha reação teria sido pensar que está faltando serviço nas Sociedade Entomológicas da América e do Canadá. Hoje, apesar da persistência do seu caráter anedótico e até ridículo, a notícia da imposição à sociedade da troca de nome de um inseto é altamente preocupante.
Sim, imposição, porque, pelo andar da carruagem, em breve quem chamar uma vespa asiática assassina pelo nome estará sujeito a multa ou até prisão. Basta lembrar que, de forma similar, já é considerado crime no Canadá tratar uma pessoa pelo pronome "errado" - isto é, por um pronome diferente do que ela decidiu usar.
Ora, eu tenho direito de perceber minha identidade como eu quiser, mas não posso impor à sociedade mudar a língua em função da percepção que eu tenho de mim mesmo, ou posso? Nesse caso, se eu perceber a minha identidade como pertencente à realeza, posso exigir ser tratado por todo mundo como "Sua Alteza"? A comunicação vai ficar muito difícil se tivermos que lembrar ou adivinhar como cada pessoa com quem esbarramos se identifica.
Mas, por se recusar a adotar diferentes variações de pronomes neutros no ambiente acadêmico, o psicólogo Jordan Peterson já sofreu pesadas sanções. A mais recente e branda foi a suspensão da sua conta no Twitter, por usar o pronome “errado” ao se referir a uma atriz que amputou os seios.
É assustador. Estamos vivendo um contexto de crescente controle da linguagem e, consequentemente, de restrições cada vez maiores à liberdade de expressão. Ora, controlar a linguagem é o primeiro passo para o projeto mais ambicioso de controlar o pensamento. Aceitar as imposições do politicamente correto e vigiar permanentemente as próprias palavras tem um impacto direto na formulação e no direcionamento das nossas ideias.
O controle da linguagem pode ser usado, inclusive pelo Estado, para condicionar o raciocínio, isto é, determinar aquilo que você consegue ou não pensar com o repertório de palavras autorizado pelo poder – como bem profetizou George Orwell no romance “1984”, no qual um personagem explica o objetivo da “Novilíngua”:
“Você não percebe que a verdadeira finalidade da Novilíngua é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado a crimideia literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo.”
No Brasil, os ataques à liberdade de expressão já estão sendo feitos sem qualquer cerimônia, com o apoio, quem diria, da grande mídia e até do Poder Judiciário. Pessoas estão sendo perseguidas e presas por crimes de opinião. Já está acontecendo.
A liberdade de expressão hoje funciona assim: você tem o direito de se expressar, desde que expresse a mesma coisa que eu. (A este respeito, ver a entrevista que fiz com Gustavo Maultasch, autor do livro "Contra toda censura".) A liberdade de expressão não pode ser pretexto para o discurso de ódio. "Mas fulano escreveu um artigo desejando a morte do presidente!" Neste caso pode.
Jamais, nem em plena ditadura militar, as pessoas viveram em um ambiente no qual fosse tão intensos a autocensura, a preocupação em não usar um termo ou expressão potencialmente proibidos (ou potencialmente ofensivos ao moralismo lacrador) e o medo de sofrer represálias sociais ou até judiciais por causa de uma opinião. Defender a democracia passou a ser sinônimo de censurar, perseguir e esfolar.
É claro que os censores têm sempre um motivo nobre para decidir o que você pode ou não falar. No caso das vespas assassinas, quem pode ser contra proteger nossos amigos asiáticos, não é mesmo? Li em algum lugar que todo mundo que endossa barbárie tem uma justificativa moral, e é verdade. A barbárie está em curso, começando pela linguagem. A “censura do bem” está mais forte do que nunca, e os censores estão batendo no peito, orgulhosos de sua virtude.