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No último dia 12, a publicação do edital do novo PNLD – Programa Nacional de Livros Didáticos ensejou uma forte reação de alguns políticos. Objetivamente, substituíram-se no texto do edital temas associados à igualdade de gênero, à orientação sexual, à homofobia e à transfobia por “conteúdos que promovam positivamente a imagem do Brasil, a amizade entre os povos e a promoção de valores cívicos, como respeito, patriotismo, cidadania, solidariedade, responsabilidade, urbanidade, cooperação e honestidade”.
Mas isso bastou para o Governo ser acusado de “suprimir princípios éticos e democráticos” do PNLD e de permitir que “livros de cunho racista, que reproduzem a desigualdade entre homens e mulheres, preconceituosos, com nordestinos, por exemplo, sejam comprados com dinheiro público e colocados em sala de aula” (texto extraído do tweet de uma deputada).
A motivação da reação da deputada pode até ter sido boa – o combate a diferentes formas de preconceito – mas o fato é que nenhum “princípio ético e democrático” foi suprimido com a alteração do edital, nem tampouco se pode acreditar de boa-fé que o objetivo do governo é comprar livros de cunho racista ou preconceituosos com nordestinos para “colocar em sala de aula”. Aliás, com ou sem edital, imaginem o escarcéu que todos fariam se isso acontecesse...
A responsabilidade pela seleção dos livros que serão comprados para alunos da rede pública de todo o país, com idade entre 6 e 10 anos, do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental, é do FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, autarquia ligada Ministério da Educação. Todos os anos o programa compra mais de 150 milhões de exemplares dos títulos escolhidos – o que representa, inclusive, um fator fundamental para a saúde financeira das editoras.
Pois bem, segundo o MEC, neste ano o governo decidiu, entre outras coisas, priorizar as áreas de português e matemática, aprimorando conteúdos voltados à alfabetização. É esta a sua aposta na educação. Em outras palavras: mais foco na real capacitação das crianças, e menos foco na lacração. É uma prerrogativa do governo e, a meu ver, uma decisão estratégica acertada.
Todas as crianças precisam aprender a ler e fazer conta, para que não cheguem mais tarde na universidade na condição de estudantes de segunda classe, de analfabetos funcionais que dependam de cotas e outros mecanismos reparadores para conquistar uma vaga. Como escrevi em um artigo recente, a solução para a educação está na universalização do ensino básico de qualidade, não na distribuição de diplomas de ensino superior que não servem para nada. A ênfase no ensino do português e da matemática no novo PNLD, portando, deveria ser celebrada por todos.
Por outro lado, a ênfase em temas ligados à orientação sexual abre as portas para a disseminação do ensino da ideologia de gênero para as crianças, algo que está longe de ser uma bandeira consensual na sociedade brasileira - na verdade, ela só é defendida por uma minoria. Por óbvio, retirar essa ênfase do edital – voltado, repito, a crianças de 6 a 10 anos, não significa que se está estimulando professores a ensinar essas crianças a serem preconceituosas.
Mas, mais uma vez, o que se vê é uma velha tática da esquerda, da galera do “ódio do bem”, dos ativistas do cancelamento e dos militantes da censura democrática. Acusa-se um adversário, com o maior estardalhaço possível, de fazer algo que ele não fez – no caso, acusa-se o governo de tentar promover o ensino do preconceito e da defesa da desigualdade em sala de aula. Conquista-se, assim, o apoio de milhares de pessoas que, por inocência útil ou má-fé, reproduzem e disseminam a acusação mentirosa. Ao acusado resta o constrangimento de precisar se defender de um crime que não cometeu. Geralmente esse processo não dá em nada, mas desgasta os envolvidos e arranha a imagem dos acusados.
Seja como for, o episódio enseja algumas reflexões sobre os temas excluídos do edital do PNLD e sobre o ensino da ideologia de gênero no ensino fundamental. Essa controvérsia começou em 2014: ao estruturar o Plano Nacional de Educação daquele ano, o MEC propôs incluir no currículo escolar do ensino básico temas relacionados à identidade de gênero e à sexualidade.
Este é um tema que pode ser percebido através de lentes radicalmente opostas: há quem, de boa-fé, enxergue no ensino da ideologia de gênero a bandeira legítima e necessária da tolerância à diferença. Mas há também quem, igualmente de boa-fé, enxergue aí um plano de doutrinação das crianças que passa pela desconstrução dos os valores associados à tradição, à família e à religião. Talvez a verdade esteja no meio do caminho, mas o fato é que a narrativa de um projeto de destruição deliberada da família já deixou de soar como uma teoria da conspiração absurda.
Esse debate, aliás, não se restringe ao Brasil. Há poucos anos, em 2017, a cineasta iraniana (radicada nos Estados Unidos) Anahita Ghazvinizadeh lançou o longa-metragem “They”. A sinopse do filme, apresentado como um “retrato delicado do período de suspensão entre a infância e a idade adulta, entre identidades sexuais e de gênero” e exibido no Festival de Cannes daquele ano, era a seguinte:
Aos 14 anos, J vive com seus pais em um subúrbio da cidade de Chicago. Explora sua identidade de gênero e toma bloqueadores de hormônio com o intuito de retardar sua puberdade. Depois de dois anos de medicações e terapia, J precisa decidir se irá de fato fazer sua transição. Em um fim de semana crucial, com seus pais longe de casa, a irmã de J, Lauren, e seu amigo e possível namorado Araz chegam para lhe fazer companhia. Um retrato delicado do período de suspensão entre a infância e a idade adulta, entre identidades sexuais e de gênero.
Oi?
Como diria Jack, o Estripador, vamos por partes: 1) o(a) protagonista de “They” responde por “J”, ou seja, não é menino nem menina (é “meninx” ou “menine”); 2) aos 14 anos, "J" toma há dois anos bloqueadores de hormônio para retardar a puberdade; ou seja, começou a tomar aos 12; 3) “J” “explora” sua identidade de gênero, ou seja, quer experimentar um pouco de tudo antes de decidir que gênero adotar, e começa por ter um “possível namorado”.
Assista abaixo ao trailer do filme “They”:
Lendo essa sinopse, fui invadido pela sensação de estar muito desinformado e me fiz as seguintes perguntas: 1) em que momento se tornou algo natural e socialmente aceitável uma criança de 12 anos fazer tratamento hormonal para adiar a puberdade?; 2) em que momento se tornou uma norma corriqueira crianças “explorarem” suas identidades de gênero antes mesmo de entrar na puberdade?; 3) é pra gente achar isso bonito? Sério?
Atenção: não vejo nenhum problema em reconhecer que os papéis sociais atribuídos a cada gênero são construções sociais, isto é, não estão dados, quando se nasce, como um destino inescapável. A orientação sexual de um indivíduo não necessariamente coincide com sua genética e sua anatomia. A sensação de pertencimento a um gênero é algo privado e subjetivo. Um homem pode se sentir uma mulher, e vice-versa. Aliás, isso faz parte do senso comum já há várias décadas.
Além disso, o combate à homofobia é fundamental e faz parte do próprio processo civilizatório. Ninguém pode ser perseguido por suas escolhas e práticas sexuais – como, aliás, acontece no Irã, país natal da cineasta de “They”. Cada adulto deve ser livre para viver sua sexualidade da forma que bem entender, sem sofrer nenhum tipo de constrangimento, preconceito ou discriminação — o que ainda está longe de ser uma realidade no Brasil.
Mas, se o conceito de gênero, por ser volátil, pode admitir variações, o conceito de sexo não. Em relação ao sexo só existem duas opções: ou se nasce mulher ou se nasce homem, e nascer mulher ou nascer homens tem implicações inescapáveis. Não há pós-verdade nem teoria queer, por mais engenhosa que seja, que altere o fato de que a biologia e a genética importam.
Se “gênero” pode ser percebido como um conceito social, político e cultural relativamente fluido, o sexo biológico e genético de cada indivíduo é indiscutível. É determinado pela natureza. O sexo independe de como a pessoa se sente, se enxerga ou se comporta. O sexo não é um papel social escolhido por cada indivíduo, é algo que já está dado quando ele nasce. E isso não tem nada a ver com moral, religião ou ideologia: é a realidade concreta da vida.
Coisa muito diferente de defender enfaticamente o direito à diferença e o respeito às minorias é apoiar um experimento de reengenharia psicossocial coletivo, no qual as crianças são ensinadas e/ou estimuladas a “explorar” diferentes identidades de gênero antes mesmo de atingir a puberdade, para só então decidir o que vão ser, como se escolher o próprio gênero fosse algo tão simples quanto escolher uma peça de roupa. E isso não por decisão da maioria ou consenso da sociedade, mas pela vontade de uma minoria barulhenta e mimizenta.
A pergunta a ser feita é: qual foi o plebiscito no qual a maioria da população autorizou que se implantasse esse projeto de reengenharia social no Brasil? Quando foi realizado? Por quem? Que eu saiba, esse plebiscito não aconteceu. Esse projeto é vontade e imposição de uma minoria — muito bem articulada e com muitos recursos financeiros, seguramente, mas uma minoria.
E, para essa minoria, milhares de crianças angustiadas, deprimidas e sexualmente confusas seriam um preço baixo a pagar por um mundo mais descolado e lacrador. Não se trata aqui de moralismo, mas da constatação de que estamos testemunhando um empreendimento experimental arriscadíssimo, cujo fracasso terá um custo — social, emocional, psicológico — altíssimo para toda uma geração, que está servindo de cobaia para uma agenda que sequer conta com o apoio da maioria da população.
Voltarei ao tema.