A revista “Veja” noticiou nesta semana uma fraude de R$ 1 bilhão no FIES, o programa criado para financiar graduações de alunos carentes em universidades privadas. Segundo a revista, auditores da CGU (Controladoria-Geral da União) identificaram fortes indícios de que recursos do Fundo de Financiamento Estudantil foram desviados para lobistas, servidores e um grupo de instituições de ensino. A Polícia Federal já abriu inquérito.
Há dois escândalos aí.
O primeiro escândalo:
Vamos ao primeiro, o escândalo da fraude, detalhado pela reportagem de “Veja”. O caso teve pouca repercussão e nem chegou a chocar e surpreender, dada a frequência com que a corrupção anda de mãos dadas com o dinheiro público no nosso país. Deveria, sim, causar muita indignação, porque cada real roubado da educação representa um prejuízo muito maior lá na frente – mas, enfim, estamos no Brasil.
Pois bem, mais de R$ 1 bilhão teria sido repassado de forma ilegal para instituições impedidas de participar do FIES por terem dívidas gigantescas junto à Receita Federal e ao Tesouro Nacional. Sempre segundo a revista, a fraude envolveu a ação de lobistas, a falsificação de documentos e a cumplicidade de servidores do MEC: no final do processo, 30% dos valores repassados às universidades pelo Ministério voltavam para Brasília, na forma de propina.
O absurdo não para aí. Suspeita-se que 20 universidades de pequeno e médio porte inventaram estudantes-fantasmas para vitaminar o aporte de recursos públicos: a “Veja” cita o caso de duas faculdades abertas em 2012 em Mato Grosso, que em cinco anos receberam mais de R$ 20 milhões do FIES.
A revista conclui a matéria com uma declaração do ex-ministro da Educação Cristovam Buarque que merece reflexão: “Socialmente, o FIES foi ótimo, economicamente tem sido um desastre, do ponto de vista pedagógico o resultado não é o esperado e, sem dúvida, é maravilhoso para os donos das faculdades”.
Por fim, a reportagem informa, en passant, que o FIES acumula atualmente um prejuízo de... R$ 13 bilhões, provocado pela inadimplência dos alunos que solicitaram o financiamento e, depois de formados, não tiveram condições de pagar a dívida.
É isso mesmo. O valor da inadimplência no FIES é 13 vezes maior que o surrupiado pela corrupção: R$ 13 bilhões. E chegamos assim ao segundo escândalo.
O segundo escândalo:
Este é um escândalo a céu aberto: desde a criação do FIES, a inadimplência só faz aumentar, mas sempre se fez de conta que o problema não existe. Talvez porque não pegue bem chamar a atenção para um fato desagradável: o que essa inadimplência bilionária revela é o equívoco estrutural e conceitual do programa – que, contrariamente às aparências, longe de reduzir a desigualdade, apenas alimenta e reproduz uma dinâmica social perversa e excludente.
O FIES é um programa complementar ao PROUNI – Programa Universidade para Todos, cujo objetivo está explícito no próprio nome: garantir acesso ao ensino superior a todos os brasileiros, independente do mérito, do esforço ou da vocação. Mas o que, à primeira vista, parece muito bonito, bem intencionado e justo do ponto de vista do papel redistributivo do Estado – usar recursos públicos para ampliar o acesso de estudantes carentes ao ensino superior, reduzindo o fosso que separa os mais pobres das universidades – na prática não funciona.
O principal efeito do PROUNI foi, sobretudo nos governos do PT, estimular a criação de centenas de “Uni-esquinas” Brasil afora, instituições caça-níqueis que oferecem cursos de péssima qualidade e distribuem diplomas a rodo sem qualificar ninguém – sem falar no terreno fértil aberto para esquemas de corrupção como o apontado pela reportagem de “Veja”.
Ora, desde sempre era óbvio e previsível que muitas faculdades seriam abertas apenas com a intenção de receber recursos do Ministério da Educação, sem qualquer preocupação com a qualidade do ensino.
Mas talvez a intenção de alguns envolvidos na gestão do programa fosse esta mesmo: não a melhoria e democratização do ensino superior, mas a conquista demagógica de mais votos em troca de diplomas e ilusões. Na prática, recursos acabaram sendo redistribuídos, sim, mas dos pobres – a imensa maioria dos contribuintes – para os ricos – aqueles empresários, políticos e burocratas mal intencionados, sempre dispostos a encontrar uma forma de levar vantagem e usar o sistema a seu favor.
No sistema de educação de qualquer país próspero, como a Coreia do Sul, existe um sistema de seleção que faz com que cheguem à universidade apenas os alunos mais preparados
Mas, mesmo que contasse com a honestidade de todos (não contam) e fossem programas à prova de desvios e de corrupção (não são), o FIES e o PROUNI jamais teriam como dar certo, porque partem de uma premissa errada. Em nenhum país do mundo se cogita garantir, com recursos públicos, universidade para todos – não por maldade ou por aversão aos pobres, mas porque o mercado não absorve esse batalhão de recém-formados que as universidades despejam todos os semestres na vida real – aliás, cada vez mais despreparados.
No sistema de educação de qualquer país próspero, como a Coreia do Sul, existem um afunilamento natural e um sistema de seleção que fazem com que cheguem à universidade apenas os alunos mais preparados, e em quantidade adequada às demandas e a capacidade de absorção do mercado. Se é injusto (e é) que essa competição seja desigual, o caminho é lutar por uma educação básica universal e de qualidade, que mitigue essa diferença de preparo e busque garantir oportunidades iguais para todos os estudantes que quiserem disputar uma vaga, independentemente da sua classe social.
Só quem não tem a mínima noção de como a economia funciona no mundo real pode acreditar que a solução para a educação é uma intervenção do Estado que garanta vagas e diplomas para todos, com o pretexto de proteger os pobres e oprimidos. O resultado dessa intervenção é a mediocrização da qualidade do ensino superior – inevitável, em função das sequelas trazidas do ensino básico ruim.
Somente na utopia de uma sociedade planificada seria possível imaginar que é função do Estado financiar bolsas de ensino superior para toda a população do país. Mas a História demonstra que sociedades planificadas sempre terminam em desastre.
No Brasil, em vez de atacar o problema no ponto de partida – a educação básica – tenta-se resolvê-lo na linha de chegada – garantindo a distribuição de diplomas por meio de cotas e programas de financiamento (na verdade, dinheiro a fundo perdido, já que a inadimplência, como vimos, é bilionária).
“Ain, mas tem que ter vaga para todos sim! Nenhum direito a menos!” Se o objetivo for apenas ter um diploma debaixo do braço, tudo bem: que se abram mais Uni-esquinas e se criem vagas para todos no ensino superior, financiadas com o dinheiro do contribuinte.
Mas qual será o resultado concreto disso? Um exército de desempregados, jovens sem nenhuma qualificação que podem ostentar seu diploma em selfies no Instagram, mas que não encontram emprego nem foram capacitados para competir no mercado. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o índice de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos já está em 30% (índice muito superior ao do do país, que era de 13,3% na época da pesquisa). E vai piorar.
Não adianta tentar enxugar gelo na linha de chegada: não há cotas nem bolsas que consertem o mal que foi causado no ensino básico. O PROUNI e o FIES podem até criar a ilusão de que uma injustiça histórica e social está sendo reparada, mas na prática o modelo apenas reproduz uma estrutura geradora de desigualdade, mal maquiada pelo discurso de que será distribuindo diplomas universitários que se corrigirá o problema da educação no Brasil. Universidade para todos é uma ilusão. O uso político dessa ideia deveria ser um escândalo.
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