"É um erro supor que todos os homens queiram ser livres. Ao contrário, se a liberdade acarretar responsabilidade, muitos não querem nenhuma das duas. Felizes, trocariam a liberdade por uma segurança modesta (ainda que ilusória). Mesmo aqueles que dizem apreciar a liberdade ficam muito pouco entusiasmados quando se trata de aceitar as consequências dos seus atos. O propósito oculto de milhões de pessoas é ser livre para fazer o que quiser e ter alguém para assumir, quando as coisas derem errado."
Assim começa o ensaio “E a faca entrou”, de Theodore Dalrymple. Dá o que pensar. Porque uma premissa presente em boa parte dos debates sobre política hoje, no Brasil e do mundo, é que as pessoas querem ser livres. Talvez, no fundo, não queiram. Muito menos se a liberdade exigir responsabilidade.
Por assustador que pareça, o desejo de liberdade é uma premissa equivocada, ao menos para uma parcela significativa da população. E não é necessário sequer oferecer uma segurança modesta e ilusória para convencer muita gente a abrir mão de sua liberdade: basta uma narrativa sedutora aqui, um diploma de virtude ali, uma carteirinha de justiceiro social acolá, uma bandeira identitária pra chamar de sua... E o reconhecimento dos pares.
Liberdade dá trabalho, e a escravidão voluntária da diluição no grupo traz muitas recompensas. Morte à liberdade e à responsabilidade individuais: é esta a mensagem que se transmite aos jovens, aos pobres e às minorias, já há muitas décadas.
Regimes autoritários só vingam onde contam com o consentimento de boa parte da sociedade: para quem prefere a segurança a liberdade, as ditaduras proporcionam uma consciência limpa, uma fuga da ansiedade de precisar tomar decisões e fazer julgamentos morais, já que outros farão isso no seu lugar. Seu único dever será seguir o apito de cachorro. Para quem discordar, o recado é claro: fique quieto e pague seus impostos.
Isso não acontece apenas em países da periferia do capitalismo. Com base em sua longa experiência como psiquiatra em prisões e hospitais, Theodore Dalrymple investigou como esse processo se deu na próspera Grã-Bretanha.
Em livros como “A vida na sarjeta – O círculo vicioso da miséria moral”, Dalrymple examinou as condições sociais e psicológicas das pessoas marginalizadas, fazendo uma espécie de mapa da “cultura da pobreza” na Inglaterra. O livro foi publicado em 1994; de lá para cá, a coisa só piorou.
Segundo o autor, a cultura da pobreza não é determinada apenas pela escassez material, mas também pela degradação moral e cultural das classes baixas – e, principalmente, pelo desenvolvimento de uma mentalidade de dependência do Estado, que perpetua a miséria.
Ao mesmo tempo, especialmente entre os jovens, o colapso de valores tradicionais e a ausência de autoridade moral contribuem para a escalada da violência, que é, por sua vez, naturalizada e atribuída à injustiça social.
Daí existirem intelectuais que são a favor do assalto. Em um mundo inteiramente determinado por circunstâncias econômicas e sociais, as pessoas são apenas produtos de suas circunstâncias, sem nenhum controle sobre seus destinos. Ninguém é livre, e ninguém é responsável pelos seus atos. Por isso, os ladrões também são vítimas.
O relativismo moral, o determinismo social e a cultura da vitimização frequentemente andam juntos. Em um mundo assim não existem criminosos, apenas vítimas
Dalrymple lembra que, em sua prática psiquiátrica, frequentemente lidou com pessoas que viviam em condições muito difíceis. Mas pouquíssimas lutavam para mudar, ao contrário: quase todas agravavam exponencialmente seus problemas por meio de escolhas destrutivas, que levavam ao vício em drogas, à desestruturação familiar e à criminalidade. Ninguém reconhecia a liberdade de fazer diferente, a responsabilidade pelos seus erros: todos preferiam se enxergar como vítimas das circunstâncias.
Sempre segundo o autor, ao enfatizar fatores externos como as únicas causas do comportamento humano, especialmente no contexto da pobreza, a sociedade acaba negando o livre-arbítrio das pessoas. Isso não apenas diminui a responsabilidade pessoal, mas também alimenta ciclos de mau comportamento.
O relativismo moral, o determinismo social e a cultura da vitimização frequentemente andam juntos. Em um mundo assim não existem criminosos, apenas vítimas. A vitimização é uma ideia perigosa, porque exime os indivíduos de responsabilidade: a culpa é sempre de fatores externos, como o ambiente social, as condições econômicas, o governo ou mesmo a polícia.
Disseminada, a cultura da vitimização enfraquece os padrões morais e as normas sociais, promovendo a ideia de que qualquer comportamento pode ser justificado pela situação social do indivíduo. A longo prazo, todo o tecido moral da sociedade é destruído.
A vitimização produz um ciclo de dependência e apatia, pois leva as pessoas a deixarem de acreditar na sua própria capacidade de mudar de vida. Esse sentimento de impotência, afirma Dalrymple, é incentivado pelas elites intelectuais e políticas, que reforçam a narrativa de que os indivíduos não são livres, mas reféns de suas circunstâncias.
De forma coerente, Dalrymple questiona as políticas do Estado de bem-estar social, argumentando que, ao fornecer assistência sem exigir a contrapartida de de deveres, o governo desestimula a autonomia e a superação pessoal. Desafiando o pensamento hoje hegemônico, o autor critica tanto o governo quanto as elites intelectuais, por reforçarem a narrativa de que as pessoas não são responsáveis por suas ações.
Estabelece-se assim um ciclo perverso: as massas mergulhadas na pobreza – mas não apenas elas – abrem mão de sua autonomia como indivíduos, em troca da segurança pequena e ilusória oferecida pelo Estado. Tornam-se escravas por vontade própria.
O antídoto, na época do ensaio como hoje em dia, é o resgate do livre-arbítrio e da responsabilidade individual como valores fundamentais e estruturantes da sociedade: o resgate da capacidade individual de escolher entre o bem e o mal, e da responsabilidade pelas consequências dessas escolhas.