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Tentando mais uma vez dar alguma ordem ao caos da minha biblioteca, me deparei com um livro do economista peruano Hernando De Soto publicado em 1986: “El Otro Sendero – La Revolucón Informal” (“O outro caminho – A revolução informal”). Passados quase 40 anos, as ideias do autor parecem mais atuais hoje do que na época do lançamento – e se aplicam perfeitamente à realidade brasileira.
“El Otro Sendero” se tornou rapidamente uma referência no estudo da economia informal nos países da América Latina, que aliás só aumentou. O título faz alusão à necessidade de os países do continente – Brasil inclusive – encontrarem um caminho alternativo ao da revolução pregada pelo grupo terrorista Sendero Luminoso.
Mas o livro rejeita as classificações convencionais de direita e esquerda. Por um lado, pode ser associado ao pensamento liberal, porque De Soto enfatiza a importância do mercado e da propriedade privada como motor do desenvolvimento econômico.
Por outro, seu foco na necessidade de inclusão da população mais pobre e marginalizada pode ser associado a ideias progressistas. Por isso mesmo, “El Otro Sendero já foi descrito como uma obra de "liberalismo inclusivo".
De Soto enxerga na informalidade uma resposta da sociedade às barreiras que impedem a inserção dos pobres na economia formal, bem como à incapacidade do governo de entender e atender às reais necessidades da população.
Segundo o autor, o excesso de burocracia e regulamentações, custos altos de formalização e, principalmente, impostos elevados funcionam como incentivos negativos, fazendo muita gente preferir trabalhar à margem do sistema. A consequência é que contingentes populacionais cada vez maiores perdem a proteção e os benefícios que a formalidade deveria oferecer.
De Soto enxerga na informalidade uma resposta da sociedade às barreiras que impedem a inserção dos pobres na economia formal
De Soto argumenta que o problema não é a informalidade em si, mas a rigidez das regras formais e seus altos custos para o trabalhador – custos não apenas financeiros, mas também de tempo: além de gastar demais, um microempreendedor pode levar meses ou até anos no processo de registrar uma empresa ou regularizar uma propriedade.
Empreendimentos, terras e imóveis não registrados se tornam ativos informais, que De Soto chama de “capital morto” – porque, sem existência legal, tais ativos não podem ser usados como garantia para empréstimos nem para atrair investidores, perpetuando a precariedade.
De Soto aponta como soluções para integrar esse capital à economia formal: reduzir a burocracia, simplificar o acesso à formalização e diminuir a carga tributária. Isso desbloquearia o potencial econômico dos ativos mortos. O Estado deve funcionar como ponte, não como barreira.
Segundo dados do próprio IBGE, hoje no Brasil mais de 40 milhões de pessoas trabalham na informalidade, como contratados sem carteira assinada ou como microempreendedores sem registro. Isso representa quase 40% dos trabalhadores, e o número só aumenta.
Não existe política de inclusão social mais eficaz do que criar um ambiente propício ao trabalho, à inovação e ao empreendedorismo
Essa altíssima taxa de informalidade espelha a mesma realidade que De Soto diagnosticou no Peru quatro décadas atrás. O Brasil tem uma das burocracias mais emaranhadas do mundo. O Banco Mundial já classificou o país entre os mais difíceis para se abrir, manter e até fechar um negócio. E as barreiras são ainda maiores para os mais pobres, que moram na periferia das grandes cidades e em áreas rurais.
Além disso, milhões de propriedades não têm titularidade formal. A falta de regularização fundiária impede que os moradores acessem crédito ou investimentos. Como no Peru de De Soto, o Estado brasileiro é percebido mais como um obstáculo do que um facilitador. A alta carga tributária é outro fator que faz empreendedores preferirem permanecer na informalidade.
É notável, por outro lado, a capacidade de inovação dos trabalhadores informais no Brasil. Dos camelôs que usam as redes sociais para expandir seu negócio até as cooperativas que organizam serviços essenciais nas favelas, a nossa economia informal ilustra e atualiza duas teses de De Soto: primeiro, a de que a informalidade é um ato de sobrevivência; segundo, a de que não existe política de inclusão social e de transformação da realidade econômica mais eficaz do que criar um ambiente propício ao trabalho, à inovação e ao empreendedorismo.
“El Otro Sendero” também pode ser considerado um precursor da compreensão do fenômeno da "uberização" da economia, décadas antes do surgimento de serviços como o Uber. Embora não trate da economia digital, que sequer existia, as teses de De Soto sobre a economia informal e a adaptação criativa dialogam diretamente com o processo de uberização, marcado pela flexibilização nas relações de trabalho, pela ausência de vínculos formais e pela dependência crescente da tecnologia.
Resumindo, as recomendações de De Soto são bastante simples:
- Simplificar a Burocracia, reduzindo custos e os entraves regulatórios que impedem a formalização de empresas e propriedades. O Estado deveria facilitar radicalmente o registro de negócios, propriedades e contratos;
- Garantir direitos de propriedade, já que o reconhecimento legal da propriedade privada é necessário para transformar "capital morto" em ativos que podem ser usados para gerar riqueza, sobretudo em comunidades periféricas e nas zonas rurais;
- Em vez de criminalizar ou ignorar a informalidade, o Estado deveria reconhecer a criatividade e a resiliência do setor informal, oferecendo incentivos à sua integração. No Brasil, isso poderia incluir isenção de impostos para microempreendedores e acesso a crédito subsidiado para investir em estoque e expandir seu negócio.
Medidas assim poderiam não apenas liberar o potencial produtivo de milhões de brasileiros, mas também reduzir as persistentes desigualdades econômicas e sociais do país.
Talvez daqui a mais 40 anos o Brasil decida seguir esse caminho.
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