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“Provavelmente acabaram de aparecer no noticiário ou no feed das redes sociais que você costuma usar. Tomaram alguma decisão de grande impacto, suspendendo uma lei ou uma medida do governo; determinaram medidas coercitivas contra lideranças políticas relevantes e/ou se encontraram com estas para discutir reformas legislativas; falaram à imprensa sobre temas da conjuntura (...); ou, em suas redes sociais, usaram suas contas pessoais para dar declarações bombásticas ou falar de amenidades da cultura ou do esporte. Isso é normal em uma democracia?”
O leitor não deve ter dificuldade para identificar o sujeito oculto do texto acima, transcrito do recém-lançado livro O Supremo – Entre o Direito e a política (História Real, 2023), do pesquisador e professor de Direito Constitucional Diego Werneck Arguelhes: os ministros do STF. Nem para responder à pergunta no final do parágrafo: normal não deveria ser. Mas é o que acontece quase que diariamente na democracia relativa em que estamos nos acostumando a viver.
Arguelhes, professor associado do Insper São Paulo e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, faz uma análise sóbria e equilibrada da atuação do STF nos últimos anos. Sem estardalhaço, reflete sobre a instituição com base na exposição objetiva de episódios controversos da História recente nos quais o Supremo teve um comportamento atípico. Vou transcrever diversos trechos do livro ao longo deste artigo, tão cristalinos que dispensam comentários.
Segundo o autor, a posição de centralidade que o STF ocupa hoje na vida do país, a ampliação de seus poderes e o protagonismo crescente de seus ministros configuram uma situação inédita, que sequer poderia ser imaginada 20 anos atrás: “Acompanhar a política brasileira hoje é falar do Supremo e de seus ministros”, escreve.
Arguelhes chama a atenção para uma percepção generalizada: segundo afirma, a profusão de decisões monocráticas, o desrespeito às normas de funcionamento do próprio tribunal e o caráter cada vez mais político das manifestações de seus membros – dentro e fora dos autos – são alguns dos fatores que, aspas, “despertam cada vez mais suspeitas quanto à motivação de seus integrantes” e provocam a impressão de que “o que ocorre ali é política, não Direito”.
De fato, a impressão do cidadão comum é que o STF, que deveria ser um espaço no qual se aplica a Constituição sem interferência da política, se torna, nas palavras do autor, uma “arena política como qualquer outra, em que apenas se disputa e se exerce poder”.
O título do capítulo 1 sintetiza a reação e o sentimento de uma parcela significativa da sociedade diante de algumas atitudes do Supremo: “Eles podem fazer isso?”. O problema é que, no final das contas, são os próprios ministros do STF os únicos que podem responder à pergunta, e a resposta invariavelmente é: “Sim, podemos fazer isso”.
Ou seja, cabe exclusivamente ao Supremo decidir se o Supremo está passando dos limites – ou mesmo se o Supremo tem algum limite. É um fenômeno ilustrado exemplarmente pelo famoso “Inquérito das fake news”, que o autor resume assim:
“Em 2019, o então presidente , Dias Toffoli, anunciou uma nova e forçada interpretação do regimento interno do tribunal para dizer que, em crimes cometidos por meios virtuais contra a honra e a segurança dos próprios ministros do STF, poderia ser adotado um procedimento substantivamente diferente da praxe prevalente até então. Primeiro, o ministro presidente poderia iniciar um inquérito criminal por conta própria – sem pedido do Ministério Público ou da polícia. Segundo, esse inquérito começaria acorrer diretamente no próprio STF, e não na primeira instância, como é a regra quando qualquer autoridade pública – até mesmo o presidente da República – é vítima de um crime. Terceiro, seria presidido por outro ministro escolhido pelo presidente, em vez de um relator aleatoriamente sorteado, como acontece, em geral, com processos novos no STF. No caso, Toffoli indiciou o colega Alexandre de Moraes para presidir o inquérito (...) Eles podiam ter feito isso?"
“Sem essa dupla barreira – o legislador não pode ser juiz e o juiz não pode ser legislador – a própria ideia de Estado de Direito deixa de fazer sentido. Viveríamos em um mundo no qual o que conta é a pura vontade de quem está no poder”
“Nesse e em outros inquéritos relacionados, Moraes tirou do ar o site de um veículo jornalístico, suspendeu perfis de pessoas em redes sociais, determinou que o Executivo não poderia alterar a composição de certas equipes da Polícia Federal, suspendeu políticos de seus cargos, autorizou operações policiais sem ouvir previamente o Ministério Público e determinou a abertura de novos inquéritos mesmo quando o Ministério Público pedia o arquivamento. (...) No pequeno conjunto de vezes em que houve apreciação coletiva das medidas individuais de Moraes, a resposta do Supremo foi: ‘Sim, ele podia ter feito isso’”.
O autor vai além:
“...é também necessário que o juiz não possa decidir como se fosse legislador, simplesmente imaginando que soluções criaria se tivesse o poder para resolver como bem quisesse, a despeito das leis existentes, as questões que tem diante de si. Sem essa dupla barreira – o legislador não pode ser juiz e o juiz não pode ser legislador – a própria ideia de Estado de Direito deixa de fazer sentido. Viveríamos em um mundo no qual o que conta é a pura vontade de quem está no poder – seja um legislador-juiz, seja um juiz-legislador.”
Por fim, Arguelhes enfatiza que o Supremo desempenha, obviamente, um papel importante na democracia, mas... “com disfunções de desenho e de comportamento de seus integrantes que vêm erodindo aos poucos sua legitimidade enquanto tribunal". E conclui: "Seria um equívoco grave imaginar que uma instituição que, em boa parte, se justifica por sua função de frear abusos cometidos por outros poderes, não deveria ser constantemente monitorada e aperfeiçoada para evitar abusos cometidos por ela própria”.