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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Entrevista com Gustavo Maultasch: precisamos falar sobre liberdade de expressão

(Foto: Reprodução Instagram)

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Vivemos mesmo tempos muito estranhos. A liberdade de expressão se encontra sob fogo cerrado, mas, paradoxalmente, a defesa da censura parte justamente daqueles que se consideram mais virtuosos, daqueles que afirmam lutar pela democracia.

É a censura do bem: de repente passou a ser considerado legítimo, democrático e até bonito perseguir e calar adversários com base em crime de opinião.

Ainda mais preocupante é o fato de que os linchamentos promovidos nas redes sociais vêm sendo referendados pela grande mídia e pelo próprio Poder Judiciário: em muitos assuntos, já não é possível falar ou escrever sem medir cuidadosamente as palavras, sob risco de cancelamento ou coisa pior.

Nesse contexto, a leitura de “Contra toda censura – Pequeno tratado sobre a liberdade de expressão”, do diplomata Gustavo Maultasch, é fundamental. Para discutir o tema, o autor volta aos fundamentos, respondendo a perguntas como: por que não se deve confiar ao Estado a função de definir o que pode ou não pode ser dito? Quais são os limites da liberdade de expressão? E por que é bom, para as próprias minorias e para a democracia, que se reconheça a liberdade de expressão?

Nesta entrevista, Gustavo fala sobre alguns dos temas abordados em seu livro e alerta: "Algo precioso está sendo perdido".

- A que você atribui o crescente impulso de calar os outros, que você chama de “libido censória”, no Brasil e no mundo?

GUSTAVO MAULTASCH: Eu coloquei esse nome de “libido” exatamente para passar a ideia de que é quase que um impulso natural. Muitas pessoas, quando certas demais de suas ideias, acabam pensando que devem proibir o discurso alheio. Se é errado, se é ofensivo, por que não proibir? Mas, ainda que a libido censória possa perseguir e silenciar sem razões adicionais, acredito que agora haja uma razão adicional, que é a histeria que muitos têm sentido com as redes sociais. Toda nova mídia altera a forma da comunicação, o que por sua vez altera a maneira pela qual a autoridade comunica e obtém a sua legitimidade. Por isso vemos tantas autoridades desconfortáveis, quando não histéricas, com os “fulanos” que, de uma hora para outra, decidiram falar o que pensam.

- Qual forma de censura representa uma ameaça maior à liberdade de expressão: a censura estatal ou a coerção social – via cancelamentos e linchamentos em redes sociais?

GUSTAVO: Olha, a censura estatal é sempre pior, pois ela conta com meios mais violentos de coerção: polícia, Judiciário etc. O problema é que, hoje, essas coisas se confundem; enquanto o [youtuber] Monark estava sendo cancelado, por exemplo, diversas autoridades foram a público para criticar a sua posição, quando não para agir diretamente contra ele mesmo, como, por exemplo, via Ministério Público. A mesma dinâmica que move as turbas do cancelamento tem provocado as instituições a agirem também. E o mesmo ímpeto censório, a mesma ideia de que há um “pensamento correto” tem invadido as instituições. Resumindo: a estatal é pior, mas os agentes do Estado também estão sendo movidos pela dinâmica da coerção social. Então a coerção social acaba sendo mais perigosa do que o normal, porque ela também tem servido para acionar a censura estatal.

- Um dos capítulos do livro é intitulado “Por que gosto do terraplanismo”. De que forma o terraplanismo se relaciona com a liberdade de expressão?

GUSTAVO: Esse título é uma provocação, e evidentemente que acho o terraplanismo uma teoria falsa. Mas a existência do terraplanismo traz dois efeitos positivos: primeiro, porque ele nos tira da zona de conforto e nos obriga a conhecer a nossa tese mais a fundo: por que a Terra é redonda? Nós sabemos realmente as provas clássicas, ou apenas repetimos uma fé? O segundo efeito é que ele nos lembra de que nada está isento de questionamentos, muito menos a ciência, cujo método é predicado na dúvida e no questionamento constante. Esse movimento atual de se buscar proibir discursos “anti-ciência” é abominável, há tragédias enormes que foram cometidas com lastro em teses científicas – como, por exemplo, a tese do racismo científico. Então não se pode colocar a ciência acima de questionamentos. Mesmo uma tese errada como a do terraplanismo serve para nos lembrar de que a ciência não é um dogma.

- Você escreve: “Creio que mesmo a expressão repugnante deve contar com a proteção da liberdade de expressão”. Como você responderia à acusação, previsível, de que afirmar isso significa apoiar discursos de ódio e preconceito?

GUSTAVO: Responderia o seguinte: uma coisa é reconhecer que você tem um direito, outra coisa, bastante diferente, é reconhecer que você faz um bom uso desse direito. Então uma coisa é reconhecer que você tem direito à expressão, outra coisa é concordar com o conteúdo dessa expressão. Você tem o direito de dizer que comunismo é uma boa ideia, muito embora a História tenha demonstrado que se trata de uma das ideias mais sanguinárias jamais concebidas. O mesmo vale para outros discursos extremistas. Agora, uma coisa é importante pontuar: todos concordamos que discurso de ódio é ruim. Racismo, antissemitismo, homofobia e outros preconceitos são coisas vis mesmo. A questão é qual a melhor maneira de combater esses discursos, em especial tomando o cuidado para não concentrar poder demais na mão do Estado. A proibição desses discursos é uma solução pior do que o problema original que se queria resolver.

- Que análise você faz do caso dos youtubers Monark e Adrilles Jorge, acusados de apologia ao Nazismo?

GUSTAVO: Monark apenas defendeu a visão ampla da liberdade de expressão. Muitos dizem assim: “Ah, mas ele não se expressou bem. Mas, da mesma maneira que demandamos que pessoas se expressem bem, também temos de demandar que pessoas interpretem bem. Interpretando bem, não vi nada de mais. O caso do Adrilles confesso que nem entendi a acusação, ele levantou a mão e isso é automaticamente um gesto nazista? Até agora não entendi bem, e tampouco pesquisei muito sobre o ocorrido.

Tanto o sujeito de direita que fala em regime militar quanto o de esquerda que fala em ditadura do proletariado têm o direito de defender essas ideias repugnantes no debate público

- A liberdade de expressão parece cada vez mais seletiva: não importa tanto aquilo que é dito, mas quem o diz. A mesma declaração pode ser motivo de escândalo ou considerada apenas uma brincadeira inofensiva, dependendo de quem a faz.

GUSTAVO: Sim, e esse é um ponto que eu menciono no livro. Muitas vezes, talvez até mesmo na maioria das vezes, a censura tem a ver com controle de grupo, e não com controle da informação. Por exemplo, tomemos a questão do discurso anti-ciência: se fosse para proibir todo e qualquer discurso contra a ciência, ainda assim seria ruim, mas ao menos haveria isonomia. Mas sabemos que determinados discursos do identitarismo – como, por exemplo, o de que a obesidade não é um problema médico) – muito embora contradigam a ciência, acabem tendo aceitação porque são compatíveis com uma determinada hegemonia de pensamento.

- Os ataques à liberdade de expressão são uma consequência espontânea ou uma causa deliberada da polarização política? Há uma estratégia de um campo para calar outro, o que acirra por sua vez a polarização? Ou os ataques à liberdade de expressão são recíprocos?  

GUSTAVO: As duas coisas existem: há os inocentes e incautos, mas há também os mal-intencionados. No livro cito uma pesquisa americana sobre liberdade de expressão que mostra que as pessoas mais à esquerda são, atualmente, mais favoráveis a restrições do discurso. Mas vale lembrar que isso é meio conjuntural: ao longo do século 20, a esquerda foi mais liberal em termos de livre-expressão do que a direita. Então hoje me parece haver um problema maior vindo da esquerda, mas assim como já foi diferente no passado, a coisa pode mudar de novo daqui a 10 ou 20 anos.

Gustavo Maultasch, autor de "Contra toda censura"

- Há um trecho do livro que diz “nunca faltará liberdade para quem quiser elogiar o governo”. Acredito que hoje vivemos uma situação paradoxal: só a oposição tem liberdade para expressar o que pensa, enquanto qualquer defesa do governo é mal vista. Como explicar esse paradoxo?

GUSTAVO: Quando você diz que “a defesa do governo é mal vista”, você se refere ao Executivo, correto? Porque, se for para defender o Judiciário, aí parece não haver problema. Usei a palavra “governo” num sentido bem genérico, mas talvez eu devesse ter especificado melhor, e dito algo como: nunca faltará liberdade para quem quiser elogiar aqueles que detêm poder. Daí se o Executivo realmente detém poder ou não, ainda mais se comparado ao Judiciário, é outro debate.

- Como você avalia a reponsabilidade de dois atores importantes por essa crise da liberdade de expressão no Brasil: o Poder Judiciário e a grande mídia, que deveriam ser os principais guardiões da liberdade de expressão)? De que forma, por exemplo, o “ataque as instituições” vem sendo usado como álibi para a censura?

GUSTAVO: Ao analisar uma conduta, nós sempre precisamos ter como hipótese a possibilidade de que o agente esteja sendo sincero: parece-me que muitos estão promovendo a censura porque estão preocupados, de verdade, com o futuro da democracia – ainda que possamos questionar o cabimento dessa preocupação). Só que a censura aos chamados “ataques às instituições” parte de uma teoria errada sobre a democracia e de uma teoria errada sobre a liberdade de expressão. Se a democracia é do povo, como se diz, o povo tem o direito de dispor dela, inclusive defendendo o seu fim. Tanto o sujeito de direita que fala em regime militar quanto o de esquerda que fala em ditadura do proletariado têm o direito de defender essas ideias repugnantes no debate público. Essa é uma premissa, um axioma da democracia: não tem ninguém melhor do que ninguém, não há nenhum ponto neutro superior a partir do qual se possa julgar o que é uma reforma cabível ou incabível do nosso sistema político. Enquanto o sujeito não incitar a violência, ele tem o direito a expressar suas ideias, por piores que sejam.  A outra teoria errada é a de que para defender a democracia é preciso silenciar discursos antidemocráticos. Isso muitas vezes tem o efeito contrário, minando a legitimidade da democracia como um sistema aberto. cujo rumo todos temos a chance de influenciar. Esse argumento – que podemos chamar de gambito da liberdade de expressão – é explorado em detalhe no livro.

- É possível ficar otimista em relação ao futuro da liberdade de expressão? Ou os sinais são de que a situação só vai piorar? Por quê?

GUSTAVO: Olha, essa realmente eu não sei. Acho que sou pessimista no curto prazo, acho que ainda vamos ver muitas restrições a discurso, em especial por causa dessa histeria provocada pela nova configuração do debate público, com as redes sociais. Mas sou otimista no longo prazo. Ao mesmo tempo em que vemos restrições, vemos também uma reação de muitas pessoas que percebem que algo precioso está sendo perdido.

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