Na semana que passou, a médica Rachel Levine, subsecretária de Saúde dos Estados Unidos, foi nomeada almirante quatro estrelas do US Public Health Service Commissioned Corps, pelo presidente Joe Biden. Segundo foi noticiado, é a primeira mulher a alcançar essa honraria. Mas Rachel não nasceu mulher: é o que se chama hoje em dia de “mulher trans”.
O congressista republicano Jim Banks comentou no Twitter “O título de primeira oficial quatro estrelas feminino é levado por um homem”. Pronto. Sua conta foi sumariamente suspensa, e o congressista foi admoestado por “conduta de ódio” e tratado como um delinquente: “Você não pode promover violência nem ameaçar outras pessoas com base em raça, etnicidade, origem nacional, orientação sexual, gênero, identidade de gênero, afiliação religiosa, idade, deficiência ou doença grave”.
Espero não estar cometendo nenhum crime dizendo isso, mas desde que o mundo é mundo, por critérios anatômicos, fisiológicos, genéticos, biológicos etc, nasce-se homem ou mulher, em função da presença ou ausência dos cromossomos X e Y – com exceção dos casos raríssimos de hermafroditismo, exceção que confirma a regra.
Isso não tem nada a ver com preconceito. O que passa pela cabeça das pessoas, seus desejos, suas escolhas e seu comportamento sexual, quando se tornam adultas, é problema delas. Por óbvio, nenhum adulto responsável deve sofrer discriminação ou qualquer tipo de sanção social em função do que deseja ou daquilo faz na cama (exceção feita, é claro, aos casos previstos em lei, como estupro, pedofilia etc).
Mas também parece óbvio que, primeiro, aquilo que uma pessoa deseja ou faz na cama não muda os seus cromossomos; segundo e mais importante: da mesma forma que ninguém deve ser prejudicado em função daquilo que deseja ou faz na cama, em uma sociedade que se pretende igualitária ninguém tampouco deve ser premiado ou privilegiado em função daquilo que deseja ou faz na cama.
Esperemos que Rachel Levine tenha sido nomeada almirante quatro-estrelas por sua competência e pela qualidade de seu trabalho, não por ser trans. Mas a sinalização não é esta: o que se celebrou na sua nomeação não foi seu currículo como médica, mas o fato de Rachel ser trans.
O fato é que, cada vez mais, com base em políticas supostamente compensatórias, pessoas são escolhidas para ocupar cargos de alta responsabilidade não por sua competência, mas com base, justamente, em sua identidade ou sua origem. Premia-se não mais o mérito, o esforço, o talento – que independem de sexo e identidade de gênero – mas o acaso de se pertencer a determinada minoria.
Ironicamente, este era justamente o vício do patriarcado que supostamente se pretende combater: premiar ou discriminar pessoas com base em sua identidade em sua origem. O processo de exaltação da vítima que estamos vivendo esconde, muitas vezes, o desejo de trocar de lugar com o opressor.
A luta, justíssima, pela igualdade – que pressupõe que o sexo e a orientação de uma pessoa não devem fazer diferença – foi jogada na lata de lixo da História. Parece que hoje se luta não mais pela igualdade, por direitos efetivamente iguais para todos, mas por privilégios, por direitos diferenciados para cada grupo.
Não se persegue mais a harmonia entre os diferentes pela superação das diferenças e pelo reconhecimento de uma igualdade essencial entre todos, mas um permanente estado de hostilidade e tensão no qual as diferenças são realçadas o tempo inteiro. É o que explica os cada vez mais frequentes episódios de cancelamento e linchamento virtual por crimes como “apropriação cultural” ou condutas “politicamente incorretas”.
A verdadeira conduta de ódio e intolerância foi a do Twitter: perseguir alguém pelo crime de dizer algo que não agradou à elite intelectual que domina a academia e a grande mídia
O cancelamento da conta do congressista Jim Banks foi um ato de censura explícita, uma flagrante violação à liberdade de expressão. A explicação da rede social foi a seguinte: “A conta mencionada foi temporariamente bloqueada por violar nossa política de discurso de ódio. O proprietário da conta é obrigado a deletar o tweet violador antes de recuperar o acesso à sua conta.”
Mas Banks não promoveu violência nem ameaçou ninguém: ele apenas lembrou o sexo biológico da subsecretária de saúde, que nenhuma censura vai mudar. “Meu tweet se limitou a atestar um fato”, declarou. "A Big Tech não precisa concordar comigo, mas não deveria ter o poder de me cancelar. Se eles me silenciarem, eles vão silenciar você".
Fato: se deputados podem sofrer sanções ou até ser presos por opiniões, imaginem o cidadão comum. Já está acontecendo.
A verdadeira conduta de ódio e intolerância foi a do Twitter: perseguir alguém pelo crime de dizer algo que não agradou à “elite intelectual” que domina a academia e a grande mídia.
Mas é esta cultura que está sendo imposta na marra à sociedade: calar, constranger, desqualificar e censurar qualquer um que tenha a ousadia de abrir a boca para dizer algo de que essa elite não goste. Mas quem cala, constrange, desqualifica e censura está moralmente autorizado a dizer o que quiser.
Em uma sociedade que reabilita a censura e prega o "ódio do bem", dizer o óbvio e defender a liberdade está virando a verdadeira transgressão. Outro transgressor recentemente punido foi o cientista e professor da Universidade de Chicago Dorian Abott, cancelado por opiniões politicamente incorretas sobre a diversidade e o papel da universidade.
Eu pretendia escrever mais sobre o caso, mas como o episódio já foi objeto do ótimo artigo “A história de um dos cancelamentos mais absurdos de 2021”, vou me limitar aqui a resumir o que aconteceu.
Considerado uma estrela em ascensão na Academia, com um currículo exemplar, Abott foi convidado a fazer uma palestra no outrora conceituado MIT – Massachusetts Institute of Technology, porque vinha se destacando por suas pesquisas sobre mudanças climáticas, entre outros temas.
Mas o convite foi desfeito depois que grupos identitários acusaram o professor de discurso de ódio. Com base em quê? Em um vídeo no qual Abott criticou as políticas de ação afirmativa, por tratarem as pessoas não como indivíduos, mas como membros de um grupo, “repetindo o erro que tornou possíveis as atrocidades do século 20”.
"A missão da universidade", prosseguiu Abott, "é a produção e a disseminação de conhecimento, não a promoção de diversidade, equidade e inclusão”.
Isso bastou para desencadear a fúria dos grupos identitários que hoje ditam as regras sobre o que pode e não pode ser dito (ou sequer pensado) no ambiente acadêmico. Abott, que escreveu este artigo de leitura obrigatória sobre a perseguição que sofreu e os riscos que isso representa, foi só mais uma vítima dessa histeria. É óbvio que qualquer um pode discordar dele, mas proibi-lo de falar? É algo assustador.
Continuo amanhã.
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