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Duas entrevistas do ex-presidente do Equador Rafael Correa, publicadas nesta semana na “Folha de S.Paulo” e no portal “Brasil de Fato”, são reveladoras do crescente incômodo da esquerda-raiz com o predomínio crescente da agenda identitária nos governos e partidos de viés socialista na América Latina.
Ouso dizer que os desdobramentos futuros desse conflito crescente entre a esquerda marxista e a esquerda woke serão determinantes dos rumos da política nos próximos anos, inclusive no Brasil – onde, vale lembrar, o forte crescimento da direita nos últimos anos está diretamente relacionado à rejeição do brasileiro comum às pautas progressistas nos costumes.
Em certos setores da esquerda, parece que está começando a cair a ficha: a militância sem freios e sem limites, a cultura do cancelamento, a exaltação da censura "em defesa da democracia", a perseguição de jornalistas, os ataques à liberdade de expressão, a criminalização dos conservadores e o ódio do bem já estão cansando até mesmo eleitores que fizeram o L. O ativismo da mídia, idem.
Está puxado. Muita gente, dentro da própria esquerda, já está (perdoem o meu francês) de saco cheio. Para a esquerda raiz, também fica difícil explicar a aliança da nova esquerda com megacapitalistas como George Soros, que outrora seriam execrados como inimigos de classe. (Parece que o inimigo agora é outro: é a gente simples que defende a família e os valores cristãos.)
Nas duas entrevistas citadas, Rafael Correa, de certa forma, verbaliza o pensamento e o sentimento dessas pessoas, que se sentem de esquerda mas que não compram a agenda progressista.
Correa, que presidiu o Equador entre 2007 e 2017 e vive hoje em exílio voluntário na Bélgica, classifica como um erro da esquerda colocar as pautas identitárias no centro das discussões:
“É um erro colocar isso como central em nossa agenda. Sim, são problemas, têm que ser tratados com muito respeito. Mas nem sequer resolvemos os problemas do século 18, as grandes contradições, a pobreza generalizada, a desigualdade, a exploração.”
Os desdobramentos futuros desse conflito crescente entre a esquerda marxista e a esquerda woke serão determinantes dos rumos da política nos próximos anos
Mas o mais curioso vem agora: segundo afirma Correa, esta é uma estratégia da direita para distrair a sociedade do debate mais essencial sobre pobreza e desigualdade: “Creio, inclusive, que é uma estratégia do norte, da direita, colocar para nós estes temas conflituosos para nos distrair do essencial: que estamos no continente mais desigual do planeta. E hoje ficamos brigando sobre casamento gay, aborto em qualquer momento.”
O próprio Correa, vejam só, se assume conservador em vários temas, incluindo o aborto (“Sou opositor por consciência”) e a ideologia de gênero (“Essa ideia de gênero, que um garoto de 12 anos se sente mulher, é uma loucura terrível”):
“Sempre se deve respeitar. O que não se pode dizer é: 'você se sente mulher, então comece a se vestir como mulher'. Pelo amor de Deus. Pode ser que alguma criança psicologicamente esteja preparada para ter outro sexo, pode ser uma exceção. Mas que não seja regra que um menino de 12 anos se sente mulher e temos que aceitar".
Mais: apesar de respeitar o casamento gay, afirma que a união entre homem e mulher é o “correto” e que a família é a união entre um homem e uma mulher – o que já lhe valeu, aliás, a acusação de homofobia:
"Eu disse aos gays: existe a união de fato, com todos os benefícios de um matrimônio. Mas um matrimônio em princípio, por tradição em nossa sociedade, como parte da cultura, é uma união do homem e da mulher, e eu também sigo considerando isso como correto".
Sobrou também para as feministas: "É preciso haver justiça de gênero. Por exemplo, não se pode permitir que no mesmo trabalho a mulher ganhe menos ou que tenha que ficar em casa para o homem trabalhar, cuidar dos filhos, e o homem não. Isso é justiça. Mas vêm as feministas e dizem que justiça é poder abortar quando a mulher quiser".
Correa toca em um ponto fundamental: a estratégia de “congelamento do poder global” dos países ricos de frear o crescimento econômico do Brasil
Correa argumenta: “Se Che Guevara fosse contra o aborto, não seria mais de esquerda? Se Pinochet fosse a favor do aborto e do casamento gay, não seria mais de direita? (...) Nos metemos a tentar resolver e ser vanguarda do mundo de problemas de última geração. Alguns estão na fronteira da questão moral, são problemas. Se ser progressista é assinar esse checklist, não sou progressista. Ficamos discutindo isso, e o que gera consenso na esquerda, a pobreza, a desigualdade, deixamos de tratar.”
Declarações mais do que suficientes para Correa ser cancelado sumariamente no tribunal sumário das redes sociais. (Sobre o atual presidente do Brasil, aliás, Correa também deu uma declaração passível de cancelamento: “É um dos mais brilhantes estadistas da história da América Latina. Mas obviamente tem um caminho muito tortuoso”.)
Mudando de assunto, Correa demonstra lucidez ao reconhecer que falta apoio popular aos novos governos de esquerda na América Latina, o que resulta na fragilidade dos atuais presidentes do Brasil, da Argentina (Alberto Fernandez), da Colômbia (Gustavo Petro) e do Chile (Gabriel Boric) – aliás, nos quatro países os indicadores na economia e na segurança pública são altamente preocupantes.
Como membro da esquerda-raiz, Correa ataca o chileno Boric por suas críticas ao governo venezuelano. E critica o colombiano Petro pelo que chama de “ecologismo infantil”: o equatoriano defende que a preservação da Amazônia seja conciliada com a exploração responsável do petróleo e da mineração – posição aliás defendida pela direita. Mais um motivo para cancelamento.
"O ecologismo infantil do 'não ao petróleo, não ao ouro', isso é um absurdo. Necessitamos explorar responsavelmente nossos recursos naturais, com responsabilidade ambiental e social para superar a pobreza. (...) E acrescentamos que não somos nós os principais contaminadores, são os países ricos, não os países em desenvolvimento. Temos urgência em superar a pobreza, evitar crimes cotidianos, porque são crimes a morte a crianças de patologias perfeitamente evitáveis com acesso a serviços adequados de saúde."
Aqui Correa toca em um ponto fundamental: a estratégia de “congelamento do poder global” dos países ricos de impedir o crescimento econômico do Brasil e outros países, transformados em vilões por questões ambientais, condenando-os ao papel de museu da natureza, enquanto eles próprios continuam poluindo maciçamente o planeta:
“A responsabilidade ambiental é geral, mas diferenciada. Os maiores contaminadores não somos nós, o que contamina é a opulência, não a pobreza. Ainda temos crianças que morrem de patologias da pobreza: diarreia, gastroenterite. Eles também são parte da natureza. (...) Então não é o petróleo o principal perigo para a selva, você pode ter uma exploração petroleira adequada, não é a mineração. É a falta de trabalho e de renda.”