| Foto: Reprodução Twitter
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Ainda falta mais de um ano para a eleição de 2022, mas o patrulhamento já começou – ou melhor, ele apenas está ficando mais forte e explícito, porque já há quase duas décadas patrulhar e ser patrulhado é parte indissociável da vida cotidiana no Brasil, mesmo fora do período eleitoral.

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Embora eu goste de escrever sobre política, procuro sempre fazê-lo de forma desapaixonada, porque a paixão ensurdece e cega. Concordo totalmente com Nelson Rodrigues quando ele afirma não haver nada "mais cretino e mais cretinizante" do que a paixão política: "É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”. A cada quatro anos, especialmente, eu me sinto cercado de imbecilizados.

Hoje, quando estou em uma roda de amigos e conhecidos, e a conversa começa a embicar para esse lado, eu respiro fundo, faço cara de paisagem e mentalizo a paisagem bonita de uma praia no Nordeste ou uma sonata de Beethoven. Prefiro passar por alienado a cair na armadilha de um debate inútil que tem tudo para azedar meu dia. Inútil, porque ninguém vai mudar de opinião. Melhor gastar meu tempo e energia com coisas mais interessantes e prazerosas.

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Os mais jovens podem não acreditar, mas houve um tempo em que não se rompiam amizades nem se deixava de falar com parentes por causa de política. Cada um tinha suas convicções, é claro, mas elas eram temperadas pela inteligência do ceticismo, pela consciência generalizada de que brigar por política (e, especialmente, por políticos) não vale a pena.

Essa inteligência se perdeu. Hoje vivemos uma época de adesões incondicionais na política: quem não está comigo está contra mim e, portanto, merece ser cancelado, perseguido e esfolado.

Já se tornou comum amigos de infância, com quem crescemos juntos, que nos apoiaram e a quem apoiamos em momentos difíceis, hoje nem nos cumprimentarem mais, por ousarmos discordar da sua opinião sobre algum tema controverso, ou porque ousamos votar em um candidato diferente do deles.

A cada eleição, parece que na cabeça de muita gente o Brasil só terá jeito quando 100% das pessoas pensarem da mesma maneira e votarem no mesmo candidato. Quanto mais se fala em respeito à diferença, menos se respeita a diferença. Divergir se tornou um crime cuja pena pode ser pesada: o linchamento nas redes, a perda de amigos, a perseguição no trabalho, a execração pública. Quem pensa de forma independente vira automaticamente um leproso.

Isso acontece porque associar a própria identidade a uma ideologia ou convicção política é um caminho sem volta. Não importa o que aconteça, é preciso sempre dobrar a aposta, porque outra característica desenvolvida pelos brasileiros nas últimas décadas é jamais reconhecer um erro, jamais assumir responsabilidades. A culpa é sempre do outro.

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A paixão política é como o vício em uma droga pesada.

Associar a própria identidade a uma ideologia ou convicção política é um caminho sem volta: a paixão política é como o vício em uma droga pesada

É evidente que esse vício leva a julgamentos equivocados, ainda mais entre os jovens, para quem a sensação de pertencimento ao grupo e a necessidade de aceitação são mais fortes – sendo que a pressão por pensar de forma homogênea parte dos próprios professores em sala de aula. O medo da exclusão cria brasileiros incapazes de refletir criticamente sobre as coisas e de aprender lições com o passado, até porque essas lições podem ser editadas ao sabor do vento e das pesquisas.

Ao longo das últimas décadas os brasileiros vêm sendo vítimas de um experimento social criminoso: a divisão deliberada da sociedade entre “nós” e “eles”. Metade dos brasileiros se julga moralmente superior à outra metade. Metade dos brasileiros não aceita conviver com a outra metade.

Pior que isso: as duas metades querem se esfolar e destruir mutuamente - e sentem um prazer quase sexual quando um adversário é destruído e exposto publicamente, especialmente se for famoso.

Apontar o dedo está dando um sentido para a vida de muita gente. Aliás, não é de outra coisa que trata a cultura do cancelamento: nada substitui o prazer de apagar o brilho alheio, quando não se tem brilho próprio.

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O binarismo na política envenena nossa capacidade cognitiva e até a nossa saúde mental. Agrava esse fenômeno o fato de, no Brasil, até o passado ser imprevisível: as decisões do STF e o comportamento da grande mídia em relação à reabilitação de Lula e à desconstrução de Sérgio Moro, ou a transformação de Renan Calheiros em herói da esquerda, são exemplos de que rigorosamente tudo pode acontecer na política brasileira – inclusive nada.

O direito à liberdade de opinião, sobretudo quando a opinião é moderada e cética, foi, na prática, cassado. Desaprendemos a conviver com a diferença, com o meio-termo, com a moderação e o dissenso. A polarização insana coloca todas as pessoas que não amam incondicionalmente Lula nem Bolsonaro em um limbo, em uma situação de párias sociais, que não serão mais convidados para nenhuma festa.

Não é possível que as pessoas não enxerguem o mal que isso nos está fazendo.

Há muita política da diversidade e pouca diversidade na política. Na verdade, a diversidade de opiniões está praticamente proibida no Brasil

É claro que, se o pesadelo anunciado de um segundo turno entre Bolsonaro e Lula se consumar, será necessário votar. Mas não estamos condenados a essa escolha: eu, pessoalmente, me recuso a pensar e agir como refém de uma situação na qual as únicas escolhas disponíveis implicam o prolongamento, por anos ou décadas, desse quadro de doença social no qual metade dos brasileiros deseja que a outra metade morra.

É urgente trazer de volta a diversidade, palavra que está tão na moda, para a política. Porque há muita política da diversidade e pouca diversidade na política. Na verdade, a diversidade de opiniões está praticamente proibida no Brasil: em nome da defesa da democracia se praticam cada vez mais a intolerância e a censura.

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As armaduras ideológicas prêt-à-porter que nos vendem como únicas alternativas são falaciosas. É preciso dizer não ao falso senso comum segundo o qual só existem duas possibilidades a cada eleição - e que associa automaticamente a esquerda ao bom-mocismo, e a direita ao reacionarismo preconceituoso e elitista. Porque essa narrativa não resiste a um exame mais detalhado, nem a uma análise minimamente honesta.

A vida real não é em preto-e-branco, as coisas não funcionam assim. Há muitos tons de cinza entre as camisas-de-força do lulopetismo e do bolsonarismo. Existem pessoas bem intencionadas na esquerda e na direita, e existe gente desonesta também, e todos podem ser moderados ou radicais. Julgar que se declarar de esquerda (ou de direita) torna uma pessoa boa ou moralmente superior às demais é apenas ridículo. A vida é muito mais complexa que isso.

A não ser no discurso ideológico que joga brasileiros contra brasileiros, parentes contra parentes, amigos contra amigos, o mundo não está dividido entre seres humanos de direita e seres humanos de esquerda. É preciso haver alternativas ao centro, à direita e à esquerda para eleitores que não gostem de Bolsonaro nem de Lula.

A própria ideia de que, em relação a qualquer tema controverso, as pessoas têm o dever de comprar um pacote fechado é igualmente absurda. Uma pessoa pode (ou deveria poder) defender o livre mercado e ser a favor do aborto; ou ser evangélica e de esquerda; ou ser homossexual e defender o livre porte de armas; ou pertencer a uma minoria racial e discordar das cotas raciais, ou defender, ao mesmo tempo, uma intervenção maior do Estado na sociedade e os valores da família cristã.

No mundo real, há pessoas de direita que fazem mais pela justiça social que muitos esquerdistas, bem como esquerdistas autointitulados defensores da democracia que não hesitam em fraudar as regras da democracia para voltar ao poder. Há direitistas que consomem drogas, como há esquerdistas que são racistas e homofóbicos - na vida real, não no discurso.

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Fazer escolhas com a própria cabeça precisa deixar de ser arriscado, de ter um preço social e profissionalmente elevado. Desde que de forma responsável, sem violar nenhuma lei nem prejudicar ninguém, todo mundo deve ser livre para fazer suas escolhas sem ser policiado, patrulhado e perseguido.