• Carregando...
Mussolini inspecionando tropas na Etiópia.
Mussolini inspecionando tropas na Etiópia.| Foto: Reprodução/Comuni di Cinisello Balsamo/Wikimedia Commons

Dia desses, uma colunista da “Folha de S.Paulo” escreveu que os eleitores americanos farão uma escolha entre o fascismo e a democracia nas próximas eleições. É apenas mais uma das manifestações diárias de uma visão da política que pode ser resumida assim: democracia é quando a esquerda ganha; fascismo é quando a esquerda perde. É a democracia de um lado só.

Mas não é só isso. Se hoje você se declarar contrário, por exemplo, ao uso de drogas, à linguagem neutra, ao aborto, à invasão de propriedades, à censura, ao terrorismo do Hamas ou aos banheiros unissex, é bem provável que apareça alguém para chamá-lo de fascista. Porque é assim que funciona hoje em dia: em lugar de argumentar, o comando é desqualificar o adversário com base na ofensa e na adjetivação barata. Tudo em defesa da democracia.

O problema é que esses supostos defensores da democracia estão começando a perceber que mais da metade da população brasileira, segundo seus próprios critérios, é composta por fascistas. Pelo menos parece ser este o recente recado das urnas: a esquerda tomou uma sova do centro e da direita, e o vereador mais votado na maior cidade do país tem como propostas "proibir trans no banheiro feminino" e "investigar grupos terroristas que invadem propriedades na cidade". (Mas a reação do esquerdista médio é: "Que horror! Trata-se, evidentemente, de um fascista! Gente assim precisa ser extirpada!)

Nesse cenário desolador, a publicação de um estudo sério e ambicioso sobre o fascismo – o real, não o imaginário – merece ser aplaudida. É o caso do livro “O fascismo como ideologia e revolta totalitária”, do advogado e cientista político João Eigen, que mergulha nas fontes para entender o movimento que governou a Itália por mais de duas décadas - e, aliás, tinha como lema "Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado". Nesta entrevista, Eigen fala sobre a relação entre fascismo e marxismo e aborda outros temas analisados no seu livro.

- Muitas pessoas hoje classificam o nazismo como sendo de esquerda, com base no próprio nome do partido (“Nacional Socialista”). Isso é correto? Afinal, o nazismo foi de esquerda ou de direita?

JOÃO EIGEN: É uma pergunta complexa e polêmica, mas é importante considerar uma questão essencial: o que significam "esquerda" e "direita"? Para enquadrar alguma ideologia nesses termos, é necessário compreender o que eles representam. Para fins desta entrevista, considerarei "esquerda" como uma ideologia revolucionária que busca reestruturar a sociedade e, talvez, até o próprio ser humano em novos e inéditos moldes; e "direita" como a rejeição e a resistência a ideias e políticas revolucionárias, baseadas em algum sentido de "ordem natural" ou "natureza humana".

Nesse sentido, a ideologia nacional-socialista e sua prática política, levando em conta seus objetivos, podem ser consideradas de esquerda. O próprio Hitler, embora se posicionasse como "nem de esquerda, nem de direita", sempre se via como um revolucionário e líder de um movimento revolucionário. O conservadorismo, a defesa da burguesia e da monarquia, por exemplo, eram, para Hitler, execráveis, e ele não demonstrava simpatia pela manutenção do status quo, seja o antigo governo do Kaiser ou a República de Weimar.

Hitler pretendia criar uma sociedade nova, autossuficiente e racialmente homogênea, baseada no princípio da "igualdade de oportunidades", em que, para cada cidadão ariano, todas as possibilidades e oportunidades de educação e aprimoramento estariam acessíveis, independentemente de classe, status social ou renda. Para ele, o Estado deveria garantir o livre acesso à educação e a qualquer posto público ou emprego a qualquer ariano que demonstrasse aptidão e capacidade para ocupá-lo. Era uma tentativa de conciliar o individualismo do darwinismo social com seus impulsos socialistas e igualitários.

Agora, fica a questão para o leitor: essas ideias soam mais à esquerda ou à direita?

- Mas existe um fascismo de esquerda?

EIGEN: Quando se trata dos dias atuais, sou categórico: não, não há nenhum movimento ou regime fascista em funcionamento. Nenhum regime atualmente incorpora traços fascistas em sua ideologia, embora a prática da China possa remeter ao corporativismo dos anos 30. Agora, falando do regime fascista, houve, devido à sua natureza proteiforme, diversos grupos mais alinhados a ideias revolucionárias e modernizadoras, ou a tendências conservadoras e monarquistas.

No fascismo, não havia unanimidade ideológica; diferentes grupos de interesse disputavam para impor suas ideias na ideologia e na prática do regime, com Mussolini orquestrando essa dança em benefício próprio. Havia, portanto, elementos de "esquerda" e de "direita" no regime fascista.

"O fascismo como ideologia e a revolta totalitária" (2023) de João FD Eigen.
"O fascismo como ideologia e a revolta totalitária" (2023) de João FD Eigen.| Reprodução/Appris Editora

- Objetivamente, quais foram as diferenças e as interseções entre o fascismo e o nazismo?

EIGEN: Muita gente se refere ao "fascismo genérico", isto é, a um fascismo que engloba o fascismo italiano, o nacional-socialismo alemão, o salazarismo, o varguismo, etc., mas isso é, objetivamente, uma construção equivocada, e nunca houve na história tal "fascismo" unificado. O que existiram foram diferentes regimes com suas distintas ideologias e uma aliança militar malsucedida entre o fascismo e o nazismo.

Ao diferenciá-los, o aspecto mais óbvio é o racismo. Enquanto o nazismo era claramente racista, o fascismo não o era de forma essencial. Não há, de maneira significativa, qualquer ideia de racismo biológico ou social-darwinista nos escritos dos principais teóricos do regime fascista, como Giovanni Gentile, Alfredo Rocco, Enrico Corradini, Sergio Panunzio, Carlo Costamagna e Giuseppe Bottai. O próprio Mussolini, em diversas entrevistas nos anos 1930, criticou o racismo nazista como imoral e anticientífico, e a maioria da população italiana desprezava o racismo germânico.

Outra diferença significativa é a justificativa do imperialismo fascista. A insistência em adquirir colônias africanas se pautava em uma "reivindicação moral" de que todos os países deveriam ter seu "lugar ao sol" para um equilíbrio geopolítico saudável. Além disso, mencionava-se o dever do fascismo de espalhar as supostas benesses e avanços culturais e morais da civilização italiana aos africanos, não para exterminá-los, mas para "melhorá-los" — um análogo ao "fardo do homem branco" dos ingleses. A justificativa nazista para a expansão imperialista, por outro lado, era focada na necessidade de criar uma autarquia autossustentável e racialmente homogênea, com a aniquilação das raças consideradas inferiores, se necessário.

- Como foi possível a esquerda brasileira, que defende um Estado forte e dirigista, colar na direita, que defende um Estado pequeno e o livre mercado, o rótulo de fascista?

EIGEN: É uma pergunta interessante. Note que o termo "fascismo", devido à sua natureza proteiforme e às peculiaridades históricas, causou, e ainda causa, considerável confusão. Quando os comunistas perderam a guerra civil no Biennio Rosso, Stálin, Dimitroff e o recém-fundado Comintern adotaram políticas para enquadrar todo e qualquer oponente do comunismo revolucionário como "fascista", independentemente de quem fosse. Por exemplo, até mesmo os social-democratas, marxistas da ala moderada, passaram a ser chamados de "social-fascistas" porque não acreditavam na revolução armada. Essa política, claramente equivocada, ganhou força e foi disseminada por todo o movimento comunista internacional, com consequências extremamente graves.

Durante a corrida eleitoral alemã, quando Hitler ameaçava ganhar cada vez mais votos, os comunistas se recusaram a formar uma aliança com os social-democratas porque, segundo eles, não havia diferença entre esses "social-fascistas" e os nazistas, pois ambos eram "fascistas".

De forma semelhante, em 1934, quando Hitler ameaçou anexar a Áustria após o assassinato de Dollfuss, muitos comunistas se recusaram a apoiar a resistência austríaca porque, novamente, para eles, não havia diferença entre os conservadores e liberais apoiadores de Dollfuss e os nazistas; ambos eram "fascistas".

Essa tendência continuou após a Segunda Guerra, com uma mudança: agora, os inimigos da revolução eram não apenas fascistas, mas nazistas ou "nazifascistas". Com a ascensão da New Left no meio acadêmico ocidental, essa tática retórica se disseminou ainda mais e, naturalmente, foi importada para o Brasil. Mesmo após a queda da URSS, nossos anacrônicos professores marxistas ainda perpetuam essa retórica sem sentido, e os militantes repetem-na acriticamente. Stálin certamente estaria orgulhoso do sucesso de sua propaganda.

- Feita a ressalva de que seria recomendável muito mais rigor e cautela na aplicação do termo fascista para adjetivar adversários políticos, que elementos do fascismo seria possível identificar nos governos de Bolsonaro e Lula, se é que é possível identificar algum? Por exemplo, em relação ao populismo, à retórica nacionalista, ao personalismo, ao discurso de confronto e polarização e ao uso da propaganda?

EIGEN: A tentação de associar figuras políticas modernas com os totalitarismos do século passado é natural e faz parte da luta política na modernidade. Contudo, quem preza pela verdade e pelo conhecimento não pode se dar ao luxo de tratar esses temas como o fazem o povo e os próprios políticos. Veja, a retórica populista está presente tanto em Lula quanto em Bolsonaro, mas convencionou-se tachar apenas Bolsonaro de fascista por isso. Acaso a retórica lulista do populismo assistencialista não é também populismo? Mussolini e Hitler igualmente utilizaram essa retórica populista de serviços públicos em seus discursos. Acaso todas as invectivas petistas contra os "yankees" e o imperialismo americano não serviram para reforçar uma identidade nacional-brasileira? Na verdade, o regime fascista tinha uma retórica muito similar ao chamar a Inglaterra e a França de "plutocracias capitalistas" que deveriam respeitar a soberania dos "países proletários" como a Itália. Contudo, apenas Bolsonaro é tachado de fascista por ter uma retórica nacionalista.

O líder personalista e o uso da propaganda para alcançar seus fins não são exclusividades de regimes fascistas. O reinado de Napoleão seria, por acaso, fascista? Ou a URSS de Stálin, a China de Mao e a Coreia do Norte dos Kim seriam todos regimes fascistas? Todas essas características são consequências naturais de regimes que criam Estados ditatoriais fortes, controladores da economia e da vida das pessoas. O fascismo foi apenas um tipo de regime totalitário que compartilhava essas características, mas se singularizava por suas particularidades.

Enfim, poder-se-iam dar mais exemplos, mas o ponto está claro: é anacrônico, errado e, francamente, simplório. Nem Bolsonaro nem Lula são realmente políticos fascistas, e quiçá as mentes pensantes de nossas universidades poderiam ser mais criativas em cunhar uma nova terminologia para os fenômenos modernos, em vez de causar confusão desnecessária com termos e regimes defuntos.

No fascismo, não havia unanimidade ideológica; diferentes grupos de interesse disputavam para impor suas ideias na ideologia e na prática do regime, com Mussolini orquestrando essa dança em benefício próprio

- Qual seria uma definição sintética e rigorosa da ideologia fascista, que hoje parece ser entendida como tudo que soa vagamente autoritário?

EIGEN: Assim como defendo em meu livro, acredito que a ideologia fascista foi peculiar e, por isso, difícil de ser compreendida. A confusão que persiste até hoje quanto ao que é fascismo se deve, em grande parte, à natureza proteiforme e confusa da ideologia. Primeiramente, diferentemente do marxismo, por exemplo, no fascismo, o movimento surgiu antes da ideologia. Mussolini fundou e consolidou o movimento fascista e até mesmo chegou ao poder em 1922 sem possuir uma ideologia sólida, consistente e unanimemente aceita, e ele próprio dizia, na época, que o movimento poderia prescindir de uma ideologia, pois se pautava no “princípio da ação”. Tudo isso mudou, claro, após a chegada ao poder. Já havia intelectuais no movimento cientes da necessidade de solidificar uma justificativa ideológica para o movimento e o regime, como Giuseppe Bottai e o próprio Giovanni Gentile, mas Mussolini demorou para de fato se dedicar a esse esforço.

O primeiro esboço sério nesse sentido foi a entrada "fascismo", escrita em 1929 por Gentile na prestigiosa Enciclopédia Italiana. Esse texto foi posteriormente publicado autonomamente como a famosa "Doutrina do Fascismo", atribuída a Mussolini, mas que teve Gentile como ghost writer. Basta lê-lo para perceber que há uma intrincada e profunda filosofia idealista que o fundamenta, e outros intelectuais, como Sergio Panunzio, Ugo Spirito e Carlo Costamagna, todos renomados doutores em Direito e Filosofia, fizeram suas contribuições — frequentemente contrariando as perspectivas de Gentile. Isso tudo demonstra que o fascismo teve, sim, uma tentativa de solidificar uma ideologia com ideias elaboradas e de considerável calibre filosófico, e não apenas um mero autoritarismo bruto e sem fundamento.

No fim das contas, o fascismo foi uma tentativa de síntese de três elementos: o idealismo filosófico italiano, o nacionalismo orgânico e o sindicalismo revolucionário. A síntese, no entanto, não funcionou.

- Qual foi a contribuição de Giovanni Gentile para a construção do fascismo italiano? Em que contexto ele desenvolveu seu pensamento? Qual foi a relação de Gentile com Mussolini?

EIGEN: Giovanni Gentile foi, antes mesmo de o fascismo sequer existir como movimento, um dos mais renomados pedagogos e filósofos do idealismo filosófico italiano. Ao lado de Benedetto Croce – seu amigo e, por um tempo, sócio –, Gentile, com sua filosofia idealista particular intitulada "attualismo", tornou-se o filósofo italiano mais famoso e citado em todo o mundo. Intelectuais e pedagogos do calibre do americano John Dewey, e revolucionários como Vladimir Lenin, referenciaram os trabalhos de Gentile como relevantes.

Quando, ao fim da Primeira Guerra, Mussolini liderava o movimento fascista, Gentile manteve-se como um observador reservado, sendo chamado para ocupar o cargo de Ministro da Instrução Pública no primeiro gabinete do governo Mussolini, em 1923. Nesse momento, Gentile se filiou ao Partido Nacional Fascista e passou a se dedicar à criação de uma filosofia que justificasse o fascismo não apenas para o povo italiano, mas também para a história da Itália. A apoteose desse esforço foi a já mencionada "Doutrina do Fascismo".

A relação de Mussolini com Gentile, por sua vez, foi ambígua. O Duce certamente nutria respeito pelo filósofo, mas acabou utilizando-o pragmaticamente quando foi necessário fixar uma ideologia para o regime, e depois o foi, gradualmente, relegando ao segundo plano, à medida que outros intelectuais começaram a criticar o protagonismo exagerado de Gentile. Mesmo nos estertores do regime, já rebaixado a uma figura de segunda categoria, Gentile permaneceu fiel ao Duce e ao projeto fascista, sendo assassinado em 1944 por um partidário comunista da resistência. Gentile foi sepultado com honras na Basílica de Santa Croce, ao lado de Galileu e Maquiavel.

- Um pensador que parece ausente do seu livro, mas muito importante para se entender a política hoje, inclusive no aspecto da guerra cultural, é Antonio Gramsci. De que forma a crítica de Gramsci ao fascismo lançou as sementes de uma esquerda mais preocupada com a cultura do que com a economia, como a que temos hoje?

EIGEN: Não mencionei Antonio Gramsci em meu livro porque ele não contribuiu para a consolidação da ideologia fascista. Certamente, Gramsci foi um astuto observador dos acontecimentos da época, e sua crítica ao regime de Mussolini está fortemente ligada à derrocada do movimento comunista durante o Biennio Rosso. Gramsci preocupava-se em entender por que o proletariado italiano não havia se tornado revolucionário e, além disso, por que, em boa parte, apoiou o movimento fascista que derrotou os comunistas.

Nesse sentido, Gramsci é herdeiro da visão crítica do marxismo de Eduard Bernstein, ao questionar a ideia de que a consciência revolucionária surgiria espontaneamente conforme o capitalismo avançasse. Se não é isso que impulsionaria o proletariado à revolução, então certamente outra coisa o faria. Mussolini, que fora colega e líder de Gramsci nos anos de militância no Partido Socialista, chegou à conclusão de que a nação e o sentimento de nacionalidade eram o que levaria os italianos a uma consciência revolucionária. Já Gramsci percebeu que havia uma alienação que não dependia do processo material de produção.

Se a consciência revolucionária não depende da infraestrutura, então, talvez esteja atrelada, de alguma forma, à superestrutura, ou seja, ao mundo das ideias, concepções, ideologias etc. Distanciando-se do marxismo ortodoxo, como muitos o fizeram na esteira de Bernstein, Gramsci decidiu tentar abrir o caminho para a consciência revolucionária por meio de uma "limpeza" dos elementos alienantes da superestrutura. O longo tempo de Gramsci nas prisões do regime fascista certamente contribuiu para essas conclusões.

- A ação Integralista Brasileira de Plínio Salgado, que chegou a ser um partido bastante popular na década de 30, tinha em comum com Getúlio Vargas (cujo golpe a AIB apoiou, em 1938) a defesa de um Estado corporativo e sindicalista. A AIB era verdadeiramente fascista? Depois dela, houve políticos e partidos com elementos realmente fascistas no Brasil?

EIGEN: A AIB e o integralismo, de maneira geral, foram influenciados pela estética fascista nos anos 20. Veja, quando Mussolini surgiu no cenário italiano com seu movimento fascista, a estética das camisas negras, a marcha uníssona, os gestos sincronizados etc., causaram um enorme impacto em muitas pessoas, como Hitler, a AIB e outros movimentos no mundo todo. Muitos copiaram as táticas e estéticas fascistas, como os camisas-marrom na Alemanha e os camisas-verdes no Brasil, e, nesse mesmo sentido, a disciplina paramilitar e os gestos de força passaram a fazer parte de grupos políticos de pressão.

Contudo, assim como não considero o nazismo similar ao fascismo, a AIB também não foi semelhante ao fascismo. O fascismo, como dito anteriormente, foi uma tentativa de síntese de idealismo, nacionalismo e sindicalismo, algo bem peculiar; no caso da AIB, por exemplo, houve muito mais vertentes católicas e, em alguns casos, antissemitas do que idealistas. Acredito que devemos pecar por excesso na hora de utilizar termos do léxico político-ideológico para evitar confusão e, dadas as diferenças entre a AIB e o fascismo, não consigo considerá-los similares.

O líder personalista e o uso da propaganda não são exclusividades de regimes fascistas. O reinado de Napoleão seria, por acaso, fascista? Ou a URSS de Stálin, a China de Mao e a Coreia do Norte dos Kim seriam todos regimes fascistas?

- Que correlação você estabelece entre o marxismo e o fascismo? De que maneira o fascismo italiano foi consequência do socialismo europeu?

EIGEN: Eu entendo que, diferentemente do que alegam os próprios marxistas, parte da origem do fascismo se deu em função da crise do marxismo na virada do século 19 para o século 20. Após a morte de Engels, as previsões de Marx sobre a crescente pauperização da classe trabalhadora e o surgimento de uma consciência de classe revolucionária não se materializaram, levando muitos marxistas a questionarem a justeza e a viabilidade do projeto marxista.

Um desses marxistas, e o mais famoso, foi Eduard Bernstein, considerado o herdeiro não oficial de Engels. Ao analisar as estatísticas da época, Bernstein concluiu que, de fato, a classe trabalhadora sob o capitalismo estava experimentando melhorias nos salários e na qualidade de vida. Ao apontar publicamente essa realidade, Bernstein foi execrado do Partido Social-Democrata Alemão e tornou-se persona non grata. No entanto, o dano já estava feito. Revolucionários em toda a Europa começaram a questionar a viabilidade do marxismo como projeto revolucionário, especialmente em países industrialmente atrasados, como a Itália e a Rússia.

Na Itália, uma ala da esquerda radical sindicalista começou a ler Bernstein e outros autores que apontavam essas falhas do marxismo, percebendo prontamente a necessidade de uma nova classe revolucionária, mais condizente com a situação italiana. Se o avanço do capitalismo não garantiria a revolução, então a consciência revolucionária deveria ser criada pelos próprios intelectuais dentro de partidos e grupos de ação. Mussolini, após um breve período como marxista ortodoxo, associou-se aos sindicalistas e foi influenciado por essas ideias. Durante a Primeira Guerra Mundial, o internacionalismo proletário mostrou-se uma ficção, e Mussolini passou a questionar se uma revolução nacional italiana não seria mais adequada para o próprio povo italiano. Isso levou à sua expulsão do Partido Socialista Italiano.

Após esse episódio, já imbuído de ideias alternativas de revolução, Mussolini concluiu que a revolução socialista deveria ser nacional, com uma classe revolucionária voltada para as necessidades nacionais. A guerra havia comprovado que o nacionalismo era o impulso mais forte dos homens, superando qualquer pertencimento a uma suposta "classe social". Assim, Mussolini completou sua conversão de um marxista internacionalista para um nacional-socialista e, em seguida, fundou vários grupos políticos, culminando na criação dos fasci di combattimento. Nascia, então, o embrião do fascismo como o conhecemos.

- Uma das seções do livro se intitula “O fascismo como democracia totalitária e religião política”. Explique essas duas expressões, “democracia totalitária” (que parece uma contradição em termos) e “religião política”. De que forma esses dois conceitos iluminam a política hoje, no Brasil e no mundo?

EIGEN: De fato, para nós, atualmente, o termo "democracia totalitária" soa como um oximoro, mas para os fascistas, não. É notável que, dentro do regime, a intelectualidade fascista se empenhou consideravelmente em apropriar-se do termo "democracia" para legitimar e configurar o fascismo. Para eles, o fascismo seria uma democracia melhor, mais madura e mais natural do que as "decadentes democracias ocidentais", pois, segundo esses intelectuais, a representação política do povo no Estado seria mais direta e orgânica. Eles rejeitavam a ideia do voto indireto e da disputa entre vários partidos políticos em um parlamento; em contrapartida, na democracia fascista, a existência de um único partido representando todo o povo seria uma forma superior de representação. O povo italiano, ao trabalhar e se sacrificar nas corporações controladas pelo Estado, estaria se auto representando no sistema político fascista, em vez de eleger um representante para representá-lo indiretamente em um parlamento.

Surpreendentemente, intelectuais como Giovanni Gentile e Antonio Fantechi utilizaram Jean-Jacques Rousseau como autoridade política para o conceito de democracia orgânica que o regime estava tentando implementar. Certamente, trata-se de uma teorização sem lastro na realidade histórica: o sistema de representação corporativa fascista foi uma grande falha e serviu apenas como expediente de controle político sobre a produção nacional e a classe trabalhadora.

Quanto à questão da religião política, o regime realmente tentou glorificar a revolução de 1922 — realizada na Marcha sobre Roma — como um evento de consequências monumentais, equivalentes à morte e ressurreição de Cristo, e não estou exagerando: a maioria dos livros publicados pelo regime continha duas datações, uma com o ano do calendário gregoriano, por exemplo, 1935, e outra, logo abaixo, em algarismos romanos; "Anno XIII". Isso significava "ano 13", ou seja, 13 anos após a Marcha sobre Roma de 1922. Além disso, o regime promovia diversos cultos públicos ao Estado e aos guerreiros caídos nas trincheiras da Primeira Guerra, assim como sacralizava a iconografia do fasci littori.

Certamente, tal expediente, realizado de forma tão ubíqua e durante tantos anos, tinha a intenção de sacralizar a revolução de 1922 como um evento essencial para a humanidade — pelo menos para os italianos. Esses arroubos do regime frequentemente entravam em conflito com a autoridade da Igreja Católica, e muitos membros e simpatizantes do regime ficavam numa corda bamba entre sacralizar o Estado fascista e manter-se fiéis e obedientes à autoridade católica. Muitos, naturalmente, conciliavam os dois por conveniência, e o regime não se importava muito, desde que a autoridade do Estado não fosse questionada. O povo italiano certamente não acreditava na religiosidade do Estado fascista e permaneceu católico, mas, como sempre ocorre, adulavam publicamente o regime quando necessário.

Hoje, no mundo das democracias ocidentais, não há nenhum regime com tais intenções de criar uma "democracia totalitária" e uma "religião política" nos moldes do Estado fascista. Contudo, há uma questão importante: os fascistas não estavam totalmente errados ao tentar "mudar" o conceito de democracia, pois, em sua essência mais pura, a democracia direta tende a ser mais ou menos o que eles tentaram criar: um controle estatal mais direto, que se justifica como uma representação mais "pura", "orgânica" e "direta". Pode-se encontrar tais ideias, como mencionado, em Rousseau e até mesmo nos jacobinos da Revolução Francesa, como Saint-Just e Robespierre.

- Quais seriam os herdeiros do fascismo hoje?

EIGEN: Há certos grupos italianos marginalizados que flertam com as ideias do regime de Mussolini, mas não se consideram “neofascistas”, e sim propriamente fascistas. Eles se veem como os atuais herdeiros do fascismo e, mesmo assim, estão frequentemente tentando “limpar o nome” do fascismo ao tentar desassociá-lo de grupos neofascistas que, muitas vezes, misturam ideias racistas, neopagãs e ariosóficas, que não têm nada a ver com o fascismo mussoliniano. Para um termo que é utilizado de forma tão ampla, essa é uma conclusão bastante decepcionante: os verdadeiros herdeiros do fascismo são pequenos grupelhos italianos.

Conteúdo editado por:Aline Menezes
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]