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Quem estiver passeando na China e assistir a “Clube da Luta” – um cult do final dos anos 90, dirigido por David Fincher e com elenco encabeçado por Brad Pitt e Edward Norton – vai se surpreender: por determinação das autoridades chinesas, o final icônico do filme... mudou!
Vejam vocês: as cenas com a explosão de arranha-céus do sistema financeiro, apagando registros bancários e destruindo o modelo social baseado no consumismo e no endividamento, mensagem final do filme, foram trocadas por um letreiro que diz: “A polícia rapidamente descobriu o plano e prendeu todos”. Seria cômico, se não fosse trágico.
A versão “modificada” foi lançada na plataforma de streaming chinesa Tecent Video. Não foi um episódio isolado. Pouquíssimos filmes estrangeiros têm autorização para circular na China. Filmes com temas “controversos”, então, nem pensar – incluindo aqueles com temática LGBT.
As obras que passam pelo crivo da censura frequentemente têm sequências inteiras cortadas, de forma a não ferir as regras severas impostas pelas autoridades: cenas eróticas ou muito violentas também costumam ser tesouradas.
Para só citar dois exemplos recentes, “Bohemian Rhapsody”, a cinebiografia do cantor Freddie Mercury, da banda “Queen”, teve expurgadas todas as cenas que faziam referência à homossexualidade do protagonista e à Aids. E a série “Game of Thrones” foi tão mutilada que, segundo espectadores ocidentais que tiveram acesso à edição chinesa, ficou parecendo um “documentário sobre castelos medievais europeus”.
O governo chinês é uma ditadura, e ditaduras censuram. Se o final de um filme ou uma série não agrada ao governo chinês, ele simplesmente manda mutilarem a obra, substituindo a sequência final inteira por um letreiro tosco. Ou, simplesmente, proíbe a circulação da obra. É assim que funciona.
Na cultura do cancelamento também é assim: não há espaço para a liberdade criativa, nem para visões e opiniões divergentes. Se uma música, filme ou livro não agrada, a obra tem que ser sumariamente impedida de circular, e o artista tem que ser cancelado e esfolado em praça pública.
A diferença é que, em uma ditadura, a censura vem de cima e é imposta pela força; na cultura do cancelamento, são pessoas comuns, que afirmam defender a democracia, que se unem para censurar, na base do grito, da intimidação e do constrangimento. E ainda batem no peito, ostentando virtude. É a censura do bem.
Chico Buarque, que no passado resistiu à ditadura militar, baixou a cabeça para a ditadura identitária: “As feministas têm razão”
E os artistas se curvam à pressão da patrulha lacradora com um servilismo que chega a ser chocante. O caso mais recente foi o de Chico Buarque, que pagou pedágio para as milícias do fascismo identitário ao declarar que não cantará mais em público a música “Com açúcar, com afeto”. Ele foi “alertado”, vejam só, de que a letra da composição, de 1967, é machista.
Chico, que no passado resistiu à ditadura militar, baixou a cabeça para a ditadura identitária, se ajoelhou no milho e pediu desculpas em público: “As feministas têm razão. (...) . Eu não vou cantar ‘Com açúcar e com afeto’ mais”. O poder da lacração parece intimidar mais que o poder das armas.
O problema é que, procurando bem, haverá motivos para cancelar mais da metade das músicas compostas por Chico até um passado recente – como já apontou Madeleine Lacsko neste artigo.
Chico Buarque vai renegar toda a sua obra? Outros compositores tampouco resistiriam a um pente-fino. Por exemplo, seguramente mais da metade dos sambas que até outro dia eram considerados “normais” terão que ser censurados também, por objetificarem a mulher e empregarem palavras proibidas na novilíngua politicamente correta, como “cabrocha” e “mulata”.
(Curiosamente, nunca se viu nenhum protesto das feministas contra as letras de funk que, pelo menos desde o imortal verso “Um tapinha não dói”, objetificam as mulheres sem a menor cerimônia: aparentemente os funkeiros estão liberados para objetificar quem quiserem.)
Em tempos normais, todos as pessoas envolvidas com o filme “Clube da Luta” estariam protestando contra a mutilação criminosa do filme na China. Até anteontem, estavam todos caladinhos. Até que o autor do livro que deu origem ao filme, o escritor Chuck Palahniuk, resolveu se manifestar.
Mas não para criticar as autoridades chinesas: Palahniuk aprovou a censura! E justificou: o final alterado ficou mais próximo da obra original. Aham. Como se fosse este o ponto. Passando pano para a ditadura, o escritor declarou: "De certa forma, os chineses trouxerem o filme de volta ao livro um pouco."
Artistas apoiando a censura e baixando a cabeça para a patrulha lacradora: nada de bom pode vir daí.