Quando alguém precisa de um médico, o objetivo é um só: ser atendido por um bom profissional e ficar bem de saúde. Nunca, jamais, em momento algum, uma pessoa normal vai escolher um médico com base em sua orientação sexual.
A orientação sexual de um médico não pode fazer, não deve fazer e não faz qualquer diferença: quem precisa fazer uma cirurgia de risco, por exemplo, fará o possível para ser operado pelo melhor profissional, pelo mais competente, pelo mais preparado, independente do que ele faz na cama.
Causa estranheza, portanto, que o ENARE – Exame Nacional de Residência, criado pelo Ministério da Educação (MEC) e realizado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh, uma empresa pública), tenha inserido, no formulário de inscrição do processo seletivo em curso, o campo “Gênero” (ao lado do campo “Sexo”).
Quais são o sentido, o interesse e o objetivo de se conhecer a orientação sexual dos candidatos a vagas em residência médica? Que direito a organização do exame tem de exigir do candidato essa informação? E o que será feito com ela?
O ENARE oferece mais de 3.000 vagas de residência em 81 instituições do país. Algum candidato será prejudicado ou beneficiado com base naquilo que declarar no formulário? Esperemos que não.
Ninguém pode ser discriminado em um exame por causa de sua orientação sexual, e isso inclui, evidentemente, não apenas as minorias, mas também a maioria. Nenhum candidato pode sofrer sanções por se declarar heterossexual (ou "cis"), da mesma forma que nenhum candidato pode sofrer sanções por se declarar homossexual.
Do jeito que as coisas andam, desconfio que haverá candidatos declarando uma orientação de gênero falsa, com medo de serem preteridos em uma situação de empate nas notas, por exemplo, pelo fato de pertencerem à maioria opressora. É o que acontece quando a ideologia se sobrepõe ao mérito e ao desempenho.
Mas o ENARE não se limitou a incluir o campo “Gênero” no formulário de inscrição: ele inseriu, acreditem, 47 (quarenta e sete) opções para o candidato se enquadrar – e a lista não é exaustiva, já que uma das opções é “Nenhum/ outro”. Ou seja, candidatos a uma vaga em residência médica estão sendo constrangidos a declarar sua orientação de gênero com base nas seguintes categorias:
- Agênero
- Andrógino
- Bigênero
- Cis
- Cis feminino
- Cis masculino
- Cisgênero
- Cisgênero ferminino (sic)
- Cisgênero masculino
- Dois espíritos [confesso que não sei do que se trata]
- Genderqueer
- Gênero fluido
- Homem cis
- Homem cisgênero
- Homem para mulher [idem]
- Homem trans
- Homem trans *
- Homem transexual
- HPM [idem]
- Inconformismo de gênero
- Intersexo
- MPH [idem]
- Mulher cis
- Mulher cisgênero
- Mulher para homem [idem]
- Mulher trans
- Mulher trans *
- Mulher transexual
- Não-binário
- Neutro
- Outro nenhum
- Pangênero
- Pessoa trans
- Pessoa trans *
- Pessoa transexual
- Pessoa transgênero
- Questionamento de gênero
- Trans feminino
- Trans masculino
- Trans * feminino
- Trans * masculino
- Transexual
- Transexual feminino
- Transexual masculino
- Transgênero feminino
- Transgênero masculino
- Variação de gênero
Pela confusa aleatoriedade da classificação, a lista lembra um texto famoso de Jorge Luis Borges – citado por Michel Foucault na introdução de “As palavras e as coisas”. Borges cita “uma certa enciclopédia chinesa” segundo a qual “os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas”.
Por óbvio, todo preconceito é abominável e qualquer debate é legítimo, mas qual foi a pesquisa científica que estabeleceu a existência de 47 gêneros?
Duvido, aliás, que Foucault aprovasse a lista do ENARE: provavelmente ele enxergaria nela uma ferramenta não tão sutil de controle e poder, ou uma tática discursiva de “produção da verdade”. Mas parece mesmo que a lista foi feita por um estagiário de Ciências Humanas que não leu (ou não entendeu) Foucault.
Chamam a atenção, por exemplo, a redundância e a sobreposição de categorias, a falta de padronização (por exemplo, ninguém responde à pergunta “Qual o seu gênero?” com “Inconformismo” ou “Questionamento”) e também a controversa classificação de “trans” como uma opção de gênero (não seria sexo?). É interessante constatar, ainda, que, ao lado da celebração da diversidade no campo “gênero” do formulário, o campo “sexo” se limita a “masculino” e feminino”. Precisamos problematizar isso...
Não ria, leitor, porque o assunto é sério. O que está em curso é o processo de imposição, por um grupo minoritário, de uma certa visão de mundo, de uma certa ideologia (de gênero, no caso) que supostamente prega a tolerância e a liberdade, mas que na prática está ceifando dia após dia a liberdade de pensamento e de expressão, fazendo uso da intolerância e da censura.
O fato é que, de repente, a sociedade passou a ser obrigada a aceitar calada que homens biológicos participem de competições esportivas como mulheres, ou que homens biológicos frequentem banheiros femininos na frente de crianças, porque quem ousa questionar isso é imediatamente desqualificado como sendo de extrema direita, genocida e fascista. Não existe mais direito à diferença de opinião.
Por óbvio, todo preconceito é abominável e qualquer debate é legítimo, mas qual foi o plebiscito ou decreto que estabeleceu a entrada em vigor de normas que claramente contrariam os valores e a moral da imensa maioria da população?
E qual foi, aliás, a pesquisa científica que estabeleceu que existem 47 gêneros? Fosse um exame para um pós-pós-pós doutorado em Sociologia, ou para uma "bolsa-sanduíche" de dois anos em Paris paga com dinheiro público, o formulário seria algo bastante questionável – ainda que nem um pouco surpreendente: já há muito tempo os cursos de Humanas estão dominados pela narrativa progressista-lacradora, como demonstram esta matéria da Gazeta de 2017 e este meu artigo sobre o evento comemorativo dos 100 anos da UFRJ, em 2020.
(A verdade é que ninguém liga, porque, para o brasileiro comum, esse tipo de produção acadêmica não tem nenhuma relevância.)
Mas na Saúde a conversa tem que ser outra. Da competência de um médico pode depender a diferença entre a vida e a morte de um paciente. O que importa na prática médica precisa ser, exclusivamente, a qualidade do profissional, e esta tem ZERO relação com sua orientação sexual.
Que um processo seletivo oficial exija do candidato a uma vaga em residência médica a declaração de sua opção de gênero é uma sinalização preocupante, preconceituosa e altamente suspeita. Se há cotas para orientação de gênero, estas deveriam estar claras nas regras do edital. Se não há, qual é o objetivo de saber a intimidade dos candidatos? Em que isso afeta a sua competência como médicos?
Tempos muito estranhos.
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