O novo acirramento da tensão entre a Rússia e a Ucrânia traz de volta à memória uma das maiores tragédias humanitárias do século 20 (um século rico em tragédias humanitárias): a fome que matou mais de 4 milhões de pessoas na União Soviética entre 1931 e 1934 – a grande maioria, justamente, na Ucrânia, que perdeu 15% da sua população, segundo uma estimativa conservadora.
O melhor e mais recente livro sobre o tema é o amplamente documentado “A fome vermelha – A guerra de Stálin na Ucrânia”, de Anne Applebaum – também autora de outros estudos sobre o comunismo, como “Cortina de Ferro – O esfacelamento do Leste europeu 1944-1956” e “Gulag – Uma História dos campos de prisioneiros soviéticos”.
É uma leitura dolorosa e perturbadora. A autora demonstra por A mais B que o Holodomor (literalmente, “extermínio pela fome”) não foi acidental, nem provocado por fatores climáticos: foi um genocídio premeditado por Stálin, com o objetivo de subjugar o rebelde povo ucraniano, abortar o movimento nacionalista local e esmagar as organizações que resistiam à coletivização das fazendas.
A integração da Ucrânia ao comunismo soviético era estratégica ara Stálin, que obteria assim o controle sobre os ricos recursos naturais do país, além de garantir um escudo geográfico contra as potências europeias.
Foi uma fome deliberada e assassina. À tragédia das perdas humanas se somou a destruição da autonomia, da cultura milenar e da própria língua e identidade do povo ucraniano: o russo foi imposto naqueles anos como o idioma oficial do país. Que esse genocídio seja tão pouco lembrado é um sinal assustador de como a ideologia pode cegar as pessoas para o sofrimento alheio e tornar seletiva a sua indignação.
A resistência dos ucranianos ao confisco de suas propriedades e da produção de grãos desencadeou, inicialmente, uma onda brutal de prisões, deportações para a Sibéria e fuzilamentos sumários de dezenas de milhares de agricultores. A segunda etapa do projeto genocida foi o extermínio da população pela fome: sem ter o que comer e impedidos de viajar em busca de pão, ucranianos morriam aos montes.
Quem se dispunha a trabalhar como coveiro ganhava uma pequena ração de pão e arenque, proporcional ao número de cadáveres recolhidos nas ruas e atirados em valas anônimas. Não faltaram relatos sobre pessoas enterradas ainda vivas: “A terra se mexia”, narra uma testemunha.
O filme de terror não parava aí: segundo Anne Applebaum, houve uma disparada dos casos de suicídios, assassinatos (de crianças, inclusive), saques e... canibalismo. Seres humanos foram reduzidos a feras, capazes de devorar qualquer coisa no desespero da fome: grama, cascas de árvore, insetos, cachorros, até mesmo cadáveres desenterrados de parentes.
Mas não foi só isso: à eliminação deliberada do campesinato se somou a perseguição impiedosa a intelectuais e políticos ucranianos, muitos deles presos e enviados à Sibéria, outros friamente executados, outros, ainda, levados ao suicídio.
Tudo isso já tinha sido denunciado de forma pioneira no livro “The Harvest of Sorrow”, lançado em 1986 pelo historiador britânico Robert Conquest. Mas Anne Applebaum teve acesso privilegiado a documentos que permaneciam secretos (censurados) até poucos anos atrás.
Esses documentos mostram que, ainda no início da década de 20, ficou claro que a Ucrânia seria submetida a um processo de sovietização pela força, o que incluía o assassinato em massa de camponeses. Já naquele momento, o fracasso da coletivização e a abolição do comércio deterioravam visivelmente a outrora próspera economia ucraniana: fome, inanição e doenças cresciam no mesmo ritmo da repressão.
Seres humanos foram reduzidos a feras, capazes de devorar qualquer coisa no desespero da fome: grama, cascas de árvore, insetos, cachorros, até mesmo cadáveres desenterrados de parentes
A produtividade da agricultura caiu drasticamente, por incompetência do planejamento central e por falta de motivação dos camponeses, depois que suas terras foram tomadas pelo Estado.
Em um primeiro episódio de fome, já em 1921, houve registros assustadores: “Os camponeses começaram a comer cães, ratos e insetos; cozinhavam capim e folhas”. Mas isso não era nada, perto do horror da grande fome dos anos 30.
No começo dos anos 30, os camponeses se recusaram a cooperar com os emissários de Moscou que vinham confiscar sua produção. Muitos preferiam matar ou soltar seu gado e seus cavalos a vê-los roubados pelo Estado. Pais esganavam seus filhos ou os atiravam no rio Volga, pois preferiam que as crianças morressem afogadas a vê-las “educadas na fé comunista, que acreditavam ser doutrina do Anticristo”.
As punições para quem sacrificava animais ou escondia grãos eram severas: perda da propriedade, prisão, deportação. Mas a alternativa era literalmente morrer de fome. Um camponês declarou: “Eles começaram a falar comigo sobre revolução, e eu não entendia, mas agora percebo que essa revolução significa tomar tudo dos camponeses e deixa-los nus e com fome”.
Um fenômeno interessante nessa tragédia não deixa de ser atual: camponeses que prosperassem por competência e iniciativa eram classificados como kulaks, inimigos da revolução, e perseguidos por seus colegas incompetentes e preguiçosos. Toda uma ordem social emergente se fundava, assim, no ressentimento e na inveja daqueles que escolhiam obedecer ao Estado opressor.
Também hoje, inclusive no Brasil, vigora uma cultura do ressentimento, na qual, em nome da suposta luta por igualdade e justiça social, os medíocres se unem para intimidar ou exterminar simbolicamente quem se destaca, enquanto eles próprios sonham em entregar a condução de suas vidas a um Estado-babá.
A fome da Ucrânia não foi o único nem o último crime hediondo de Stálin. Poucos anos mais tarde, em 1937/38, veio o Grande Terror, que levou ao cárcere, ao degredo ou à execução milhares de intelectuais na União Soviética.
Diante dos detalhes escabrosos dessas duas tragédias deliberadas, a da fome e a do terror, fica difícil compreender como o projeto comunista ainda encontra terreno fértil para prosperar nos corações e mentes de pessoas aparentemente normais, inteligentes e até honestas.
Não faz tanto tempo assim que tudo isso aconteceu. E é claro que as atrocidades cometidas pelos russos no tempo de Stálin ainda estão vivas na memória dos ucranianos.
Não por acaso, após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, o Parlamento da Ucrânia aprovou uma ampla legislação sobre a "descomunização" do país, que proibiu a promoção de símbolos do comunismo: monumentos foram destruídos, milhares de ruas trocaram de nome, e o partido comunista foi banido das eleições. A mesma legislação, aliás, também determinou a proibição de símbolos e propaganda do nazismo.