Um livro interessantíssimo e bastante controverso acaba de ser publicado no Brasil: “Hitler, anticapitalista e revolucionário”, do historiador e sociólogo alemão Rainer Zitelmann. O livro conta com um elucidativo prefácio de João Eigen, estudioso do Fascismo recentemente entrevistado por esta coluna.
Em uma época marcada pela extrema polarização e por estranhas alianças entre a esquerda e o grande capital, o livro de Zitelmann oferece insights valiosos para se entender como discursos populistas podem ser usados por líderes carismáticos para manipular e ludibriar diferentes segmentos da sociedade.
Mostra também que, sobretudo em contextos autoritários, as interações entre ideologia, política e economia são muito mais complexas e nuançadas do que sugerem as interpretações maniqueístas, que reduzem tudo a um embate entre esquerda e direita.
Ao investigar a relação entre a ideologia nazista e o capitalismo, Zitelmann desafia as interpretações convencionais, contestando o lugar-comum de que Hitler era um representante do capitalismo conservador. Mas o autor evita embarcar em uma discussão abstrata sobre esquerda e direita, preferindo se concentrar na forma como Hitler conduziu concretamente a economia e a sociedade alemãs.
Bem fundamentado na pesquisa de fontes primárias – discursos, artigos de jornais, registros do partido nazista, e etc. – Zitelmann demonstra por A mais B que Hitler combinava em sua retórica elementos anticapitalistas e anticomunistas - o que lhe permitia mobilizar as massas, ao mesmo tempo em que atendia aos interesses das elites. Uma estratégia bastante atual.
Com o discurso de propaganda anticapitalista, Hitler atraía trabalhadores e a classe média empobrecida, mas sem jamais abrir mão da aliança estratégica com industriais e banqueiros. A crítica ao capitalismo liberal, ao individualismo e à globalização financeira associada ao “capitalismo judaico” era altamente sedutora para uma sociedade que mergulhara em crises intermináveis desde a derrota na Primeira Guerra.
Hitler criticava frequentemente o "capitalismo financeiro judaico internacional", fundamentando sua visão econômica no antissemitismo. Em seu governo, ele promoveu o controle de preços, a coordenação centralizada de preços e salários, a nacionalização, ainda que modesta, de indústrias e diversas outras medidas intervencionistas.
Era, seguramente, uma tática populista para conquistar as massas, que enxergavam as grandes corporações como uma ameaça. Mas isso também refletia uma rejeição real do Nazismo ao capitalismo liberal – tão detestado quando o socialismo marxista.
Por outro lado, Hitler buscou o apoio de grandes industriais e banqueiros, oferecendo como contrapartida garantias de proteção de seus interesses. Essa aliança pragmática é uma das contradições centrais do Nazismo investigadas no livro.
Hitler era, de fato, profundamente anticomunista, mas seu programa se apresentava como uma alternativa tanto aos regimes marxistas como às democracias liberais – e estava longe, muito longe, do capitalismo liberal.
Todas as decisões econômicas relevantes eram tomadas pelo Estado, da alocação de recursos à definição das prioridades industriais. Salários, preços e condições de trabalho eram rigidamente regulados. O Estado direcionava investimentos e definia as áreas prioritárias de desenvolvimento econômico, como infraestrutura e indústria bélica.
A relação era de dependência mútua: o Estado garantia estabilidade e lucros, mas exigia em troca submissão total ao regime. Algo bastante atual.
O anticomunismo arrebanhou o apoio de amplos setores empresariais e industriais, que temiam a expansão da União Soviética e a disseminação do comunismo na Europa – o que era um medo bastante e compreensível, no contexto da época.
Não foram poucos os grandes empresários alemães que apoiaram financeiramente a ascensão do Partido Nazista ao poder, incluindo os donos de conglomerados como Krupp, IG Farben, Siemens e BMW.
Esse apoio, como demonstra Zitelmann, tinha duas motivações: o desejo de estabilidade, após duas décadas de caos político e econômico, e a expectativa de que Hitler reverteria as políticas socialistas implementadas durante a República de Weimar.
Esses empresários se beneficiaram, de fato, com as medidas adotadas por Hitler, como a repressão aos sindicatos independentes (substituídos pela Frente Alemã do Trabalho, controlada pelo Estado), a política de grandes obras públicas e o rearmamento do país, que geraram oportunidades econômicas e lucros significativos, em suculentos contratos com o governo.
A relação era de dependência mútua: o Estado garantia estabilidade e lucros, mas exigia em troca submissão total ao regime. Isso nada tinha a ver com livre concorrência e inovação orientada pelo mercado. O Nazismo preservou e até fortaleceu empresas privadas alemãs, transformadas em “campeãs nacionais”, mas elas precisavam cooperar com o Estado.
Também é fundamental lembrar que, durante a Segunda Guerra, essas empresas se beneficiaram com a exploração brutal, em larga escala, do trabalho escravo dos judeus nos campos de concentração e de prisioneiros de guerra deportados. Mais uma vez, isso nada tem a ver com o capitalismo, e sim com um sistema autoritário que cooptava empresários.
Até mesmo empresas estrangeiras colaboraram com o regime nazista, como a Ford, que manteve suas operações na Alemanha (Henry Ford era conhecido por suas opiniões antissemitas) e a IBM, que forneceu ao regime nazista a tecnologia utilizada para catalogar dados sobre judeus e outros grupos perseguidos. Mais detalhes no livro "A IBM e o Holocausto", de Edwin Black, e na série "Blood Money - Inside the Nazi Economy".
Por tudo isso, não parece absurdo afirmar que o Nazismo foi uma espécie pioneira de capitalismo de Estado. O governo controlava rigidamente a economia alemã, com planejamento central e fartas regulamentações estatais, de forma a alinhar os interesses dos empresários aos interesses do Estado nazista.
Capitalismo de Estado é aquele sistema em que o Estado exerce controle significativo sobre a economia, apesar de preservar elementos essenciais do capitalismo. Evidentemente, o Nazismo manteve a propriedade privada e estimulou a busca pelo lucro, mas estes foram subordinados aos objetivos ideológicos e estratégicos do regime, com rigorosa supervisão estatal. É o que acontece, por exemplo, na China de hoje.
Mais importante que ficar discutindo se o Nazismo era de esquerda ou direita é constatar que Hitler explorou os benefícios do capitalismo, ao mesmo tempo em que subordinou sua lógica ao controle estatal e aos objetivos ideológicos do Terceiro Reich. Ele criou um sistema híbrido, que combinou, muito antes da China, capitalismo corporativo, planejamento centralizado da economia e controle ideológico da sociedade.
Bem-sucedido na década de 30, esse modelo econômico se mostrou insustentável a longo prazo, mesmo com a exploração extrema dos recursos e da mão-de-obra dos territórios ocupados. Com a derrota em 1945, a economia nazista também entrou em colapso, o que revelou as limitações dessa forma particular de capitalismo administrado.