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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Inelegível mesmo?

Insegurança jurídica

(Foto: Reprodução Instagram)

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A insegurança jurídica tem efeitos desastrosos tanto para a economia quanto para a política de um país. A estabilidade de normas e instituições é uma premissa básica para que a sociedade tenha condições de prosperar e viver em harmonia.

Mais que isso: não pode existir Estado de direito sem que existam estabilidade jurídica e respeito às liberdades individuais e ao direito de propriedade, entre outros.

Mas, no Brasil, o entendimento da legislação muda a todo momento, fazendo com que decisões anteriores sejam rotineiramente desrespeitadas ou anuladas.

Esse processo não vem de hoje: em um país no qual algumas leis “pegam” e outras não, já nos habituamos ao sentimento do provisório: o que vale hoje pode deixar de valer amanhã, e o que foi decidido no ano passado pode ser revertido no ano que vem; as interpretações da lei mudam ao sabor dos ventos da ideologia e das maiorias de ocasião. É o país das reversões.

Mas não é só isso: já nos habituamos também, à sensação de que a justiça com minúscula (como sentimento interior do indivíduo) e a Justiça com maiúscula (como poder constituído) vivem em crescente descompasso no Brasil.

Para só citar três episódios recentes: foi a Justiça com maiúscula que mandou a polícia devolver um helicóptero Airbus para o PCC; foi a Justiça com maiúscula que libertou um traficante condenado com o argumento de que ele foi abordado pela polícia porque “estava nervoso”;  e foi a Justiça com maiúscula que mandou soltar outro bandido, que atirou na cabeça de uma policial, porque claramente ele “não teve intenção de matar”.

Isso também é insegurança jurídica porque, diante de notícias assim, o cidadão de bem deixa de acreditar nas instituições que deveriam protegê-lo.

Já na economia, a insegurança jurídica provoca, por exemplo, um permanente sentimento de desconfiança e inibe o apetite dos investidores, com evidente impacto no crescimento e na geração de empregos.

Parece evidente que, quanto maior a estabilidade jurídica, quanto maior a clareza sobre o entendimento e a aplicação das leis (e sobre as consequências de seu descumprimento), mais atraente se torna o ambiente de negócios de um país, o que beneficia toda a sociedade.

Quando não conseguem prever as consequências a longo prazo de uma decisão de investimento com base na norma jurídica vigente (porque, justamente, essa norma pode mudar na semana que vem, ou ganhar uma nova e criativa interpretação), aumenta a aversão do risco.

Empreendedorismo exige um mínimo de previsibilidade: qualquer mudança nas normas tributárias, por exemplo, exige que a equação financeira de um negócio seja refeita.

Para os pequenos empresários, um novo tributo ou uma mudança na interpretação da norma pode representar a diferença entre contratar mais dois ou três funcionários ou fechar as portas. A reforma tributária que vem por aí, aliás, parece assustadora.

Este é o problema da insegurança jurídica: ela deixa todo mundo inseguro, não apenas o prejudicado da hora. Quem é beneficiado hoje pode ser a bola da vez amanhã

Na política, as consequências da insegurança jurídica são ainda mais nocivas. Por exemplo, está em curso no TSE o julgamento que, ao que tudo indica, tornará inelegível o ex-presidente Jair Bolsonaro (por ter convocado uma reunião com embaixadores para tratar do sistema eleitoral brasileiro).

Na percepção de um cidadão comum, como escrevi no meu último artigo, tornar um ex-presidente inelegível por ter realizado uma reunião com embaixadores parece exagerado. Mas não vou entrar no mérito da ação: não é o cidadão comum quem decide, e criticar decisões do Judiciário é hoje comportamento de risco no nosso país.

Mas há um aspecto nesse processo que vem passando despercebido: o já citado sentimento de que tudo neste país é passageiro, transitório, temporário tira peso e relevância da decisão do TSE pela inelegibilidade.

Porque, justamente, nada impede que daqui a dois anos esta decisão seja revertida. Não muito tempo atrás quem estava inelegível (e até preso) era o atual presidente, como resultado de longos e exaustivos processos judiciais.

Ora, algumas canetadas bastaram para anular não somente todos aqueles processos, como também para jogar na lata de lixo anos de trabalho de centenas, talvez milhares de profissionais mobilizados na Operação Lava-Jato, de policiais a procuradores e juízes. Um desses profissionais, aliás, foi recentemente cassado e caçado. Tudo indica que não será o último.

A Lava-Jato, por sua vez, que era reconhecida internacionalmente com um marco no combate à corrupção do Brasil, é hoje apresentada como uma farsa, a ponto de quem dela participou estar sujeito a ser tratado como um cão sarnento.

De novo, não vou entrar no mérito: só lembro essas coisas para mostrar como tudo no nosso país pode mudar muito rapidamente – o que aliás foi tema de um artigo recente do Polzonoff.

Pois bem, parece certo que Bolsonaro será declarado inelegível – se não neste processo, em algum dos outros 15 que correm contra ele na Justiça Eleitoral (mas provavelmente será neste mesmo).

Mas fica no ar a pergunta: alguém tem certeza absoluta de que Bolsonaro continuará inelegível daqui a três anos, em 2026? Acho que nem mesmo o mais empedernido petista, nem mesmo o mais entusiasmado defensor do ativismo judicial tem, no íntimo, essa certeza.

Porque este é o problema da insegurança jurídica: ela deixa todo mundo inseguro, não apenas o prejudicado da vez. Quem é beneficiado hoje pode ser a bola da vez amanhã, e vice-versa.

Se você defende que a Constituição seja rasgada hoje para perseguir um adversário, não poderá reclamar se amanhã rasgarem a Constituição para perseguir você. Se você defende e até comemora a censura e o cancelamento de seus adversários hoje, não poderá reclamar se amanhã o censurado e cancelado for você.

É nesse contexto que deve ser entendida a relativamente escassa repercussão que o julgamento da Aije 0600814-85 está tendo entre os cidadãos comuns. Esta reportagem da BBC, por exemplo, estranha a pouca mobilização da militância bolsonarista, especulando sobre os motivos. “Especialistas” sugerem que esse desinteresse traduziria o "desembarque" do eleitorado bolsonarista, que já estaria buscando uma alternativa.

Nada mais equivocado. Se os cidadãos comuns que votaram em Bolsonaro (e nem todo mundo que votou em Bolsonaro é bolsonarista, vale lembrar) não estão dando importância ao atual julgamento é porque:

  • primeiro, sabem que não adiantaria nada protestar, que é “jogo jogado”;
  • segundo, entendem que, na nova democracia, ir às ruas protestar pode dar cadeia;
  • terceiro e mais importante, porque sentem, no íntimo, que se trata de uma decisão que poderá ser revertida daqui a dois anos, dependendo do que acontecer até lá. E muita coisa pode acontecer. O próprio ex-presidente já garantiu que não vai deixar a política e afirmou, de forma nada enigmática: “Em 2026, a composição do TSE será outra”.

Se o atual governo estiver desgastado, se a economia estiver mal das pernas, se a inflação e o desemprego estiverem em alta, se a criminalidade aumentar, se a qualidade dos serviços públicos piorar ainda mais (tomara que não) – isso sem falar na também imprevisível Providência Divina, que sempre pode se manifestar – estará criado o ambiente para mais uma reversão no país das reversões.

Caso isso aconteça, não terá sido a primeira vez, nem a última, que um tribunal superior mudará o próprio entendimento, desdizendo o que disse e desfazendo o que fez. No Brasil, até o passado é imprevisível.

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