Desde o início da civilização, a proibição de relações sexuais entre membros consanguíneos da mesma família é, com pequenas variações, um elemento comum a todas as formações sociais e culturais humanas. Freud dedicou um longo ensaio ao tema, “O horror do incesto”, incluído no livro “Totem e Tabu” (1913), no qual examina a vigência milenar dessa norma já entre os aborígenes australianos e diferentes sociedades primitivas das ilhas do Pacífico e do continente africano.
Freud voltaria a abordar o assunto em outro ensaio, “As origens da família e do clã”, de 1922, desta vez investigando o tabu do incesto como necessário mecanismo de prevenção dos efeitos biológicos nocivos das relações íntimas entre parentes.
Para Freud, a interdição do incesto – como, aliás, a proibição do parricídio – é um marco fundador da cultura, algo que está na própria raiz da civilização. O título do seu ensaio já traduz a reação espontânea de qualquer pessoa comum à mera hipótese de um relacionamento sexual entre irmãos, ou entre pais e filhos: o horror, a rejeição severa e incondicional.
Em 1949, por outras vias e ainda que fazendo críticas à interpretação psicanalítica de Freud, o antropólogo Claude Lévi-Strauss chegou à mesma conclusão, em seu livro “As estruturas elementares do parentesco”: o tabu do incesto é uma lei universal e atemporal, que marca a passagem da natureza, do estado selvagem e animal, para a cultura. É “um processo pelo qual a natureza ultrapassa-se a si mesma”, ele escreve – processo sem o qual jamais nos teríamos distanciado muito das pequenas hordas de símios que vivem em promiscuidade sexual.
(Observação: o incesto não é considerado crime no Brasil, a menos que envolva menores de 14 anos, quando é enquadrado como estupro de vulnerável. Mas o Código Civil proíbe uniões civis entre parentes próximos, por sangue ou afinidade.)
Na semana que passou, as redes sociais e a mídia decretaram que o incesto pode ser uma forma de relacionamento como outra qualquer
O horror ao incesto é um horror intuitivo, enraizado no inconsciente coletivo, algo que ao mesmo tempo é anterior e vai além de qualquer racionalização ou fundamentação – embora não faltem fundamentações). Ou seja, é um horror tão espontâneo e auto-evidente que independe até de qualquer legislação. É algo que simplesmente não está sujeito ao debate.
Ou melhor, não estava.
Na semana que passou, as redes sociais e a grande mídia decretaram que o incesto pode ser uma coisa muito natural, uma forma de se relacionar como outra qualquer – ou, no mínimo, um tema “controverso” que merece ser debatido. Só faltou dizer que, se o fato de dois irmãos se relacionarem sexualmente choca alguém, isso se deve à incestofobia, um preconceito de conservadores fascistas e genocidas que precisa ser erradicado deste país. A mensagem subliminar era: “irmãos de sangue terem relações sexuais? O que é que tem?”
Tudo começou quando um usuário do Twitter postou uma foto com a irmã, acompanhada do texto “oficializando” o relacionamento: “Incesto? Depois de manter tanto nossos afetos às escondidas (principalmente da nossa família) nós finalmente decidimos oficializar isso”, escreveu o jovem, que afirma enxergar a irmã “como uma mulher, apesar de ter crescido ao lado dela” e que “não tem nada melhor que amar amorosamente alguém que você conhece tão bem e sente tanta intimidade”. E conclui: “Nós compartilhamos desse sentimento e estamos muito contentes com isso, planejamos nos casar e adotar filhos. Afinal, nós nos amamos e nos desejamos mutuamente”.
Tudo muito natural, e o post ainda recebeu alguns comentários de apoio, do tipo: “Se vocês são maiores e os dois querem, tem problema nenhum”. Uma "influenciadora" foi além: "Já repararam como esse draminha de 'justificar' a proibição do incesto pela possibilidade de ter filhos 'defeituosos' é 200% capacitismo?"
Por sua vez, todos os portais de jornalismo que noticiaram o episódio adotaram o mesmo tom: apresentaram o caso de incesto como algo sem maior gravidade, como tema de mais um post que “viralizou” e “gerou um debate”, como mostram as manchetes a seguir:
“O Globo”: Irmãos assumem incesto e causam polêmica nas redes sociais: “Planejamos nos casar e adotar filhos”;
“Estado de Minas”: Irmãos assumem 'namoro' e criam polêmica nas redes sociais;
“Metrópoles”: Irmãos levantam debate nas redes ao anunciarem relacionamento amoroso;
“Correio Braziliense”: Irmãos assumem 'namoro' e criam polêmica nas redes sociais;
“F5 news”: Irmãos levantam debate nas redes ao anunciarem relacionamento amoroso;
Etc. Deliberado ou inconsciente, é evidente, no tratamento do caso adotado pela mídia, o esforço de naturalização da prática incestuosa anunciada pelos irmãos.
Naturalização do incesto: que bem isso pode fazer em um país no qual, as estatísticas demonstram, boa parte dos episódios de abuso sexual acontece dentro de casa? (A pergunta vale, diga-se de passagem, mesmo que tudo não tenha passado de uma fantasia de fanfiqueiros querendo ganhar biscoito nas redes sociais, aliás hipótese que nenhum jornal considerou.)
Triste fim do jornalismo: ser pautado pelas redes sociais e se limitar ao papel de repercutir as polêmicas do Twitter e do Facebook
Não vou me alongar sobre o episódio em si, porque vivemos tempos muito estranhos. Se usar o pronome de gênero “errado” já é passível de cancelamento, imaginem escrever algo que possa ser interpretado como incestofobia (vai que o crime já foi tipificado e nem estou sabendo). Mas chamo a atenção para dois aspectos do comportamento da mídia no episódio em questão:
Primeiro: na tentativa de não perder espaço para as redes sociais, grandes jornais optaram por emular as redes naquilo que elas têm de pior, repercutindo e amplificando a voz dos exércitos de lacradores que tentam impor no grito as suas pautas.
Nelson Rodrigues e Umberto Eco foram proféticos quando afirmaram que os imbecis tomariam conta do mundo, por serem maioria (segundo Nelson) – uma maioria que a internet dotou de um poder que ela jamais teve antes (segundo Eco).
Nesse contexto, até como estratégia de sobrevivência caberia aos jornais seguir o caminho oposto ao da manada, para se diferenciar dela e atrair o leitor, em vez de seguir a manada e se confundir com ela, afastando o leitor. Mas estão fazendo a escolha errada.
Triste fim do jornalismo: ser pautado pelas redes sociais e se limitar ao papel de meramente reproduzir e repercutir as polêmicas do Twitter e do Facebook, ao sabor do vento, com a mesma profundidade e o mês viés dos internautas da geração mimimi - que odeia a família, odeia o capitalismo e prefere ver o país destruído a ver o país dar certo com o presidente eleito.
Nem Freud explica essa escolha, que é receita infalível para uma morte lenta e sofrida: ora, quem vai pagar assinatura de um jornal para ler a montanha de lixo que está disponível de graça nas redes, em tempo real?
Segundo, e mais importante: o abismo cada vez maior que separa esses jornais do Brasil real, dos valores do brasileiro comum que tem família, estuda e trabalha – e que corre atrás de suas conquistas, em vez de se vitimizar e fazer de apontar o dedo para os outros a sua razão de viver. Porque uma coisa é certa: ao contrário do que a mídia sugere, para esse brasileiro comum incesto não é motivo de debate.
Se continuaram cavando esse buraco e aumentando esse abismo, a crise do jornalismo – crise como atividade econômica e crise do papel de ator relevante na sociedade – só vai piorar. Nada de bom pode vir dessa aposta.
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