O presidente dos Estados Unidos decide retirar as tropas do Afeganistão, e a operação é um desastre absoluto. Lendo o noticiário internacional nos últimos dias, fiquei com a sensação de déjà vu: onde foi mesmo que eu já assisti a essa história? Até que a ficha caiu: ora, é exatamente este um dos plots da oitava e última temporada da série “Homeland”, lançada em fevereiro de 2020. E é possível tirar algumas lições interessantes da comparação entre ficção e realidade.
Na ficção, o presidente Warner cai na conversa dos bem-intencionados Saul Berenson, alto funcionário da CIA, e Carrie Mathison, a perturbada protagonista da série, e toma a histórica decisão de “trazer os rapazes de volta”. Desde a Guerra do Vietnã, quando a sociedade americana sofreu o trauma de ver jovens soldados (estima-se que mais de 60.000) voltando para casa em caixões, esse tipo de atitude costuma ser altamente popular no país.
O próprio Donald Trump, que ontem pediu a renúncia de Biden e classificou a operação como “a maior vergonha da História dos Estados Unidos”, já tinha prometido trazer os rapazes de volta até o final de seu Governo. Mas decidiu não mexer nesse vespeiro, porque teve que lidar com problemas mais urgentes e inesperados: a pandemia de Covid-19 e a onda de protestos desencadeada pelo assassinato de George Floyd – que foram, basicamente, os dois fatores que provocaram sua derrota na eleição do ano passado.
Curiosamente, o primeiro passo concreto para a saída definitiva do Afeganistão foi dado por Trump: coincidentemente, também em fevereiro de 2020 ele assinou com os Talibãs em Doha, no Catar, o acordo que estabeleceu um cronograma para a retirada das tropas americanas (e de seus aliados), após quase 20 anos de conflito. A contrapartida seria o compromisso do Talibã de "nenhum de seus membros, ou outros indivíduos ou grupos, incluindo a Al-Qaeda, usar o território afegão para ameaçar a segurança dos Estados Unidos e de seus aliados". Aham. O acordo de Doha é muito semelhante, aliás, ao imaginado na série “Homeland”.
A retirada das tropas, segundo pesquisas, era apoiada por 80% dos americanos, compreensivelmente marcados pela lembrança do Vietnã. Ao assumir a presidência, Joe Biden trouxe para o seu colo o desafio, assumindo o compromisso de sair do Afeganistão até 11 de setembro de 2021, quando o atentado contra as Torres Gêmeas (que deflagrou a “guerra ao terror”) completará 20 anos.
Mal assessorado – como o presidente Warner da série de TV – Biden deve ter imaginado que a ação catapultaria a sua popularidade, já claudicante. Se tivesse assistido à série, talvez não tivesse tomado essa decisão.
Em Cabul, o Talibã tomou o poder, o que é diferente de ganhar uma eleição. Enquanto isso, no Brasil, a realidade vem demonstrando que ganhar uma eleição não significa necessariamente chegar ao poder.
Na série, o presidente Warner vai pessoalmente ao Afeganistão anunciar a pacificação definitiva da região e a retirada das tropas americanas. Os soldados festejam. Horas depois da cerimônia, o helicóptero com o presidente cai na floresta. Todos que estavam a bordo morrem. Isso tudo acontece no episódio 4, analisado no vídeo abaixo:
Foi um acidente, mas o Talibã assume a autoria do atentado – e ainda derruba outro helicóptero, que estava em busca dos destroços do primeiro. O que era para ser uma vitória se transforma em um desastre de proporções épicas. Esqueçam a paz na região: a preocupação do governo americano passa a ser evitar que os Talibãs encontrem o corpo do presidente, para desfilar com seu cadáver nas ruas de Cabul. (Carrie Mathison, aliás, se torna suspeita de traição, mas isso não vem ao caso.)
Também no caso de Biden, o que era para ser uma vitória – precocemente comemorada pelo especialista em política internacional Felipe Neto, mas não apenas por ele: há vários analistas políticos “sérios” do mesmo nível nos jornais e na TV – virou um fiasco. Biden foi, ao menos, mais cauteloso, evitando ir pessoalmente a Cabul para anunciar a paz na região.
A primeira lição óbvia que fica é: não se pode confiar no Talibã. Já tem até alguns psicopatas passando pano e dizendo que o Talibã mudou: as mulheres vão até poder sair sozinhas na rua, vejam só!
Piada. Não existe “Talibã do bem”. O próprio Barack Obama entendeu isso quando decidiu manter as tropas americanas no Afeganistão, no final de 2015. Na época, ele declarou: "Essa é a coisa certa a se fazer. Como comandante-em-chefe, não permitirei que o Afeganistão seja usado como local seguro para terroristas atacarem nossa nação novamente."
Mas há outras lições, menos óbvias.
Primeira lição menos óbvia: a de que nos tornamos uma sociedade de engenheiros de obras prontas. Se saísse tudo conforme o planejado, estariam todos comemorando, à maneira de Felipe Neto. Como deu tudo errado, a condenação à decisão de Biden foi unânime, gerando um enorme alvoroço nas redes sociais. Gente que até ontem nunca tinha ouvido falar no Talibã protestou de forma indignada contra a retirada das tropas, execrando o presidente americano – que, também até ontem, era o queridinho dos progressistas lacradores, também conhecidos como “a galera do bem”. Contraditório? E daí? O importante, sempre, é ficar bem na fita, aderir à manada e exibir o carimbo de virtuoso na testa.
Segunda lição menos óbvia: a de que tomar o poder é diferente de ganhar uma eleição. E quem afirmou isso foi José Dirceu, em uma entrevista não tão distante, de setembro de 2018: "É uma questão de tempo pra gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição". O Afeganistão daqui pra frente é a ilustração concreta do que pode acontecer quando radicais tomam o poder, atropelando regras e instituições.
Em Cabul, o Talibã tomou o poder, o que é diferente de ganhar uma eleição. Enquanto isso, no Brasil, a realidade vem demonstrando que ganhar uma eleição não significa necessariamente chegar ao poder.