“Johnny Depp acusa ex de defecar em sua cama; Amber Heard diz que fezes eram de cachorros, mas funcionária desmente”. Foi há um mês, no dia 14/07, que um portal de jornalismo publicou essa manchete escatológica, e desde então a cobertura do processo judicial envolvendo a dupla de atores tem sido fértil em material bizarro.
O texto explicava:
“Johnny Depp e Amber Heard têm trocado acusações. Em uma delas, o ator diz que Amber defecou na cama do casal durante uma das brigas. Fotografias das fezes foram mostradas no tribunal. Amber insiste em negar que tenha defecado na cama e afirmou que as fezes eram de seus cachorros, Pistol e Boo, dois yorkshires. Mas esta semana, Depp ganhou o apoio de uma das funcionárias da casa.
“Hilda Vargas, que trabalhou por 30 anos com Depp, declarou em seu depoimento ao tribunal que as fezes "eram claramente humanas" e que os dois cachorros nunca haviam sujado a cama anteriormente. Ela ainda garantiu que os animais nunca subiram na cama por conta própria. O incidente teria acontecido em 22 de abril de 2016.”
Para entender como um casal de ricos e famosos chega a este ponto, jogando no lixo suas imagens e, potencialmente, suas carreiras em Hollywood, é preciso fazer uma breve recapitulação.
Johnny Depp, 57 anos, o astro da franquia “Piratas do Caribe” e dezenas de outros filmes, e Amber Heard, 34 anos, uma atriz mediana e bonita, se conheceram durante a filmagem do longa-metragem “Diário de um jornalista bêbado” (inspirado na vida de Hunter S.Thompson, o mítico fundador do jornalismo gonzo). Eles se casaram em fevereiro de 2015 e se divorciaram, litigiosamente, menos de dois anos depois, após vários barracos em público.
Na época da separação, Amber declarou que sofreu violência física e psicológica durante o casamento (o que o ator sempre negou). Mas concordou em não denunciá-lo formalmente por agressão quando ele aceitou desembolsar U$ 7 milhões (que foram doados para instituições de caridade).
A história podia ter terminado aqui, mas em abril de 2018 o tabloide britânico “The Sun” publicou um artigo chamando o ator de “espancador de esposa”, com base em novas alegações de Amber. Naquele mesmo ano, a atriz escreveu um artigo no “Washington Post” sobre violência doméstica, afirmando que tinha sido abusada durante seu casamento.
Depp decidiu abrir dois processos por difamação, o primeiro contra Amber e o segundo contra o tabloide britânico, afirmando que sua ex-mulher mentiu e forjou agressões. Desde então, já são quase dois anos de lavação de roupa suja em praça pública. Nesse período, o valor de mercado de Johnny Depp foi ladeira abaixo. O de Amber também. Ambos perderam papéis milionários em projetos cinematográficos.
No decorrer do julgamento do caso contra o “The Sun”, Depp teve que admitir seu consumo em escala industrial de drogas e álcool (não que isso fosse exatamente um segredo), e sua ex-mulher se viu exposta à acusação de ter traído o ex-marido com vários famosos, incluindo o magnata Ellon Musk e o ator James Franco (parece que isso também não era exatamente um segredo). Episódios do passado vieram à tona, como uma prisão de Amber em 2009, por ter agredido sua então namorada, a fotógrafa Tasya Van Ree. Também foi revelado que ela quase decepou um dedo de Depp em um acesso de fúria, além de ter atirado uma garrafa de vodca contra ele. Isso sem falar do episódio do cocô na cama, que Depp classificou como “um fim apropriado para esse casamento” (o assunto ocupou a Corte britânica por vários dias).
Nessa altura o leitor pode estar se perguntando qual é a relevância desse caso, mais adequado a uma revista de fofocas. Explico: esse processo se transformou em algo maior, que não diz respeito apenas a estrelas decadentes e sua intimidade; ele se transformou em mais uma batalha da guerra cultural em curso no Ocidente.
Desde que as acusações de Amber vieram a público, o movimento #MeToo iniciou uma campanha para cancelar Johnny Depp, e se ele ganhar a ação isso representará um duro golpe para o movimento que, nos últimos anos, vem se dedicando incansavelmente a destruir reputações, como a do cineasta Woody Allen. A simples possibilidade de relatos de vítimas serem contestados na Justiça é assustadora para o #MeToo.
(Parênteses: atenção! A bandeira da luta contra o assédio na indústria do cinema é justíssima; mas, como outras bandeiras justíssimas, vem sendo apropriada – pela esquerda e pelos movimentos identitários –, distorcida e colocada a serviço de uma agenda ideológica. Fecha parênteses)
Ou seja, neste momento Johnny Depp não está mais lutando somente contra Amber Heard e contra o tabloide “The Sun”, mas contra toda a lacrolândia. Seu caso se tornou uma batalha da guerra cultural. E ele já tem um exército de fãs postando nas redes sociais mensagens com hashtags em sua defesa, como #JusticeForJohnnyDepp e #WeAreWithYouJohnnyDepp.
É cada vez maior o número de internautas convencidos da falsidade das acusações da atriz, que estaria se aproveitando da onda do movimento MeToo. Isso porque, ao longo dos depoimentos, várias testemunhas se manifestaram a favor do ator, incluindo suas ex-mulheres Vanessa Paradis (com quem ele tem dois filhos) e Winona Ryder (que declarou: “Não quero chamar ninguém de mentirosa, mas, de acordo com minha experiência com Johnny, é impossível acreditar que essas terríveis alegações sejam verdadeiras”). Convocado a depor, um guarda-costas do ator afirmou que, em várias ocasiões, Amber agrediu Depp a ponto de deixar ferimentos visíveis no seu corpo, incluindo queimaduras de cigarro.
A massa que vinha crucificando o ator se dividiu, e parte dela passou a esculachar a atriz. Afinal de contas, Depp talvez seja a vítima e não o culpado. E agora são os partidários de Amber que lamentam que ela esteja sendo retratada como uma sociopata manipuladora.
A previsão é que o julgamento termine esta semana. O julgamento formal, quero dizer. Porque em outro julgamento – o do tribunal sumário da mídia e das redes sociais – Johnny Depp já foi acusado, condenado e esfolado, para delírio da turma do “ódio do bem”, que baba de contentamento diante da desgraça alheia. Mas, em menor medida, o mesmo passou a acontecer com Amber Heard, nas últimas semanas. E chegamos aqui a outro tema deste artigo: o perigo dos julgamentos inquisitoriais da mídia e da internet.
A verdade é que ninguém que participa do linchamento de Depp (e, mais recentemente, também do linchamento de Amber) sabe o que realmente aconteceu, mas todo mundo se apressa a exercer os papéis de promotores e juízes. Nem o ator nem a atriz são os primeiros a serem massacrados pelas turbas anônimas nas redes sociais. E é impossível estimar os danos causados: carreiras destruídas, perdas materiais, danos emocionais irreparáveis.
A dura realidade é que as redes sociais deram aos imbecis um poder que eles nunca tiveram antes (nem muito menos merecem). Hoje uma malta de idiotas, movidos pela estupidez, pelo ressentimento ou simplesmente pela ignorância, pode se reunir e acabar com a reputação de qualquer um – e, quanto mais famoso, melhor. Os virtuosos de sofá chegam a salivar, pois encontraram um sentido para suas vidas vazias: ajudar a destruir, na base da gritaria, a vida de quem brilha, para compensar a falta de luz de suas próprias existências.
Mas é preciso dizer isso só vem acontecendo porque, em vez de apostar na diferenciação, a grande mídia decidiu se ajoelhar e se igualar, em confiabilidade, rigor e valores éticos, aos blogueiros mais desqualificados (ou mal intencionados). Hoje os grandes jornais oferecem diariamente à turma do “ódio do bem” novos nacos de carniça para saciar sua sede de sangue. Mas, ao aceitarem serem pautados pelas redes sociais, e ao comprar as narrativas enviesadas e nem sempre honestas de determinados grupos, a grande mídia está abrindo mão de seu principal capital: a confiança dos leitores comuns.