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O termo “juristocracia” foi criado pelo cientista político canadense Ran Hirschl para descrever o tipo de regime político que nasce do deslocamento de poder da esfera representativa para a esfera judicial – implodindo a clássica separação entre os Poderes, um dos pilares da democracia moderna. O fenômeno não acontece só no Brasil.
Hirschl é uma das maiores autoridades do Constitucionalismo Comparado, campo acadêmico híbrido que combina Ciência Política e Direito Constitucional. No ensaio “Rumo à Juristocracia – As origens e consequências do Novo Constitucionalismo”, ele examina como se deu esse processo de hipertrofia do Judiciário, em detrimento do Executivo e do Legislativo, em quatro países, ao longo das últimas décadas: Canadá, Israel, Nova Zelândia e África do Sul.
Cada país apresentou suas particularidades nesse processo, mas mais importante que o como é o porquê. Segundo a teoria de Hirschl, transferir poder ao Judiciário foi, basicamente, uma estratégia de manutenção da hegemonia das elites políticas e econômicas.
Isso porque o Judiciário é sempre mais previsível que o eleitorado. Sobretudo em momentos de incerteza quanto à vontade do eleitor, afirma o autor, é mais seguro limitar o poder dos representantes eleitos e transferir prerrogativas decisórias políticas para juízes não-eleitos – e, na prática, não-responsabilizáveis e não-destituíveis.
Sempre segundo Hirschl, surge assim, nos países que adotam a juristocracia, uma parceria entre as elites que se sentem potencialmente ameaçadas e o Judiciário – parceria que passa pela influência no preenchimento de cargos, nomeações, promoções etc.
No Brasil, particularmente, esse processo reforça a dinâmica perversa do capitalismo de compadrio: uma aliança mutuamente vantajosa entre instituições, empresários viciados em dinheiro público e grupos políticos cujo projeto precípuo é se perpetuar no poder.
Nessa forma degenerada de capitalismo, não há meritocracia, livre mercado, competição nem eficiência, e os resultados são desastrosos para todos que ficam de fora do esquema – ou seja, a imensa maioria da população.
Pois bem, Raymundo Faoro, aliás um dos fundadores do PT, defendia a tese de que, no Brasil, a verdadeira luta de classes se daria não entre a burguesia e a classe operária, mas entre o povo e os donos do poder, ou seja, aquele grupo que se apropria dos aparelhos do Estado e os coloca a serviço de seus próprios interesses.
Ora, nas últimas décadas o que se viu no Brasil foi justamente a aliança de um partido populista com o mais rico empresariado, com apoio dos intelectuais e da academia - que também é um aparelho de Estado.
Como nunca antes na História deste país, as empresas com maior poder econômico se tornaram sócias do Estado e dele se tornaram dependentes, beneficiárias que foram da torneira aberta da gastança. O problema é que a conta nunca fecha por muito tempo.
Embora, formalmente, a disputa política continue se dando entre os partidos e em eleições limpas, na prática esta disputa ganha contornos de uma encenação teatral, já que as decisões importantes são tomadas em outro lugar. O poder de verdade é exercido pelo estamento burocrático, expressão usada por Faoro em sua interpretação da sociedade brasileira.
"O estamento burocrático comanda o ramo civil e militar da administração e, dessa base, com aparelhamento próprio, invade e dirige a esfera econômica, política e financeira", escreve Faoro. "No campo econômico, as medidas postas em prática (...) alcançam desde as prescrições financeiras e monetárias até a gestão direta das empresas, passando pelo regime das concessões estatais e das ordenações sobre o trabalho.”
Segundo outros autores – Ricardo Peake Braga, em “Juristocracia e o fim da Democracia – Como uma tecnocracia jurídica assumiu o poder"; Glauco Salomão Leite, em “Juristocracia e Constitucionalismo democrático”; e Claudia Moraes Piovesan, em “Suprema desordem – Juristocracia e Estado de exceção no Brasil” – as condições para a implantação da juristocracia no Brasil foram criadas já pela Constituição de 1988, no seguinte contexto:
Como não se sabia ao certo o que esperar, em termos eleitorais, da transição para a democracia no pós-abertura, transferir parte do poder político ao Judiciário pareceu uma estratégia prudente para os constituintes, que eram basicamente representantes da elite patrimonialista de centro ou de partidos de esquerda e centro-esquerda.
Ao encampar na Constituição um sem-número de direitos sociais (educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, proteção aos desamparados etc) e mesmo políticas públicas (Sistema Único de Saúde, estrutura das universidades), os constituintes atribuíram ao Judiciário o papel de garantidor desses direitos, limitando voluntariamente uma parcela do próprio poder.
Mas por que eles fariam isso? O próprio Hirsch responde:
“A explicação mais plausível para o empoderamento judicial voluntário e autoimposto é que os detentores do poder político, econômico e legal estimam que serve a seus interesses respeitar os limites impostos pelo aumento da intervenção judicial na esfera política. Em outras palavras, aqueles que estão ansiosos para pagar o preço do empoderamento judicial devem assumir que sua posição (absoluta ou relativa) seria melhorada sob uma juristocracia.”
Ou seja, quanto mais as elites hegemônicas se sentem ameaçadas, por grupos periféricos ao sistema, de perder o controle nas arenas de tomada de decisão tradicionais, maior a predisposição dessas elites a transferir poder ao Judiciário, sobretudo quando elas, as elites, e ele, o Judiciário, estão alinhados ideologicamente.
“Na juristocracia”, escreve Hirsch, “as cortes somente protegem os interesses dos que não detêm poder quando são convergentes com os valores e interesses das elites detentoras do poder”.
No caso particular do Brasil, o resultado é que não existe hoje proposta legislativa, política pública ou mesmo ato do Poder Executivo que não possa ser alterado ou cancelado pelo Judiciário, nem há assunto polêmico no qual ele não possa intervir – do orçamento a campanhas de vacinação, do aborto às cotas raciais e às pesquisas com células-tronco.
E já há quem afirme, diante do crescente protagonismo político do STF e da evidente judicialização da política, que a juristocracia não respeita mais nem mesmo determinados limites da Constituição de 1988. Eis aí uma potencial ameaça à democracia, curiosamente ignorada por aqueles que em tudo enxergam ameaças à democracia - até mesmo na liberdade de expressão e manifestação.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima