Na primeira semana de janeiro de 2013, a expectativa de crescimento anual do PIB era de 3,26% – índice que hoje parece espetacular. O desemprego era baixo. A inflação projetada de 5,49%, apesar de acima do centro da meta (4,5%), parecia estar sob controle. A taxa de juros Selic estava em razoáveis, para o padrão brasileiro, 7,25%.
Havia preocupações com o setor elétrico: em função da falta de chuvas, a situação dos reservatórios das hidrelétricas era delicada, sinalizando risco de racionamento. Nada que tirasse o sossego da então presidente Dilma Rousseff.
Não se podia dizer o mesmo do então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que vinha sendo duramente criticado em função da crise da segurança pública no estado. Essa crise foi o pano de fundo para o início de uma movimentação cujo objetivo passou despercebido por todos os analistas da época: preparar o terreno para o campo governista conquistar, nas eleições de 2014, a chamada “tríplice coroa”.
O campo governista acalentava um sonho: chegar ao final de 2014 com Dilma reeleita, Haddad prefeito da cidade de São Paulo (ele já tinha sido eleito em 2012) e um petista governando o estado de São Paulo – o nome escolhido para concorrer seria Alexandre Padilha, então ministro da Saúde.
Ocupando ao mesmo tempo a prefeitura da maior cidade do país, o governo do maior estado do país e a presidência da República, o campo governista estaria mais fortalecido do que nunca para levar adiante seu projeto, com a reeleição de Dilma em 2015 e a volta de Lula em 2018, possivelmente por mais oito anos. Como todos devem se lembrar, não foi bem assim que as coisas aconteceram.
Foi nesse contexto que começaram as manifestações que ganharam as ruas 10 anos atrás. Inicialmente com uma agenda circunscrita, os protestos contra o aumento das passagens se tornaram inesperadamente o estopim de uma insatisfação nacional de grandes proporções, que levou às ruas milhões de manifestantes em centenas de cidades brasileiras – e provocou um abalo irreversível tanto na popularidade da presidente Dilma quanto na imagem do país cor de rosa que vinha sendo vendida, com relativo sucesso, para a população.
Perdida a ascendência do Movimento Passe Livre sobre os manifestantes, os protestos saíram de controle e se voltaram contra o governo: Dilma e o PT deixaram de ser poupados pelas ruas e se tornaram seu alvo preferencial. As ruas não tinham mais dono, nem uma agenda direcionada exclusivamente contra políticos da oposição ao governo federal. Crescia uma ojeriza difusa a todos os políticos e partidos – incluindo os autodenominados de esquerda, dentro ou fora do poder.
Em junho de 2023, o país está muito mais dividido e polarizado que em junho de 2013. A insatisfação de metade da população é maior – e a credibilidade da mídia é menor
As contas tiveram que ser refeitas. O mesmo cálculo político que levara o campo governista a apoiar os protestos agora o levava a dois comportamentos diferentes e até contraditórios, ainda que simultâneos:
1) Tentar transformar as manifestações descontroladas em “protestos a favor”, como se os milhões de brasileiros indignados estivessem nas ruas para apoiar o governo Dilma e pedir “mais mudanças” – ideia que seria explicitada no slogan da campanha à reeleição em 2014, “Muda Mais!”.
Embora, por ingenuidade ou má-fé, muitas pessoas tenham comprado essa tese, evidentemente com o tempo ela foi perdendo seu poder de persuasão. Simplesmente porque não existe protesto a favor.
O recado que as ruas estavam dando era de clara rejeição à corrupção e à péssima qualidade dos serviços públicos, o que incluía em especial o governo federal. Por isso mesmo, a popularidade de todos os políticos, de todos os partidos, caiu. Mas a popularidade de Dilma despencou. E era ela quem mais tinha a perder.
2) Tentar desqualificar e esvaziar as manifestações que seus próprios militantes apoiavam quando o alvo preferencial era Alckmin.
Quando ficou claro que os protestos tinham saído do controle do MPL e, por extensão, do campo do MPL, e que a popularidade do governo Dilma estava se esfarelando rapidamente:
a) O mesmo campo que promoveu e exaltou os protestos “apartidários” passou a classificar como “fascista” a rejeição espontânea à presença de bandeiras de partidos de esquerda nas manifestações;
b) O mesmo campo que identificava nos protestos uma renovação da democracia passou a associá-los à defesa da volta da ditadura militar.
Essa mudança bizarra de discurso em relação aos protestos não impediu que muita gente bem intencionada caísse na lorota. Súbito, protestar democraticamente nas ruas por melhorias nos serviços públicos e pelo fim da corrupção passava a ser percebido como uma “defesa do retrocesso”.
Coincidência ou não, a violência nos protestos aumentou, tema abordado neste outro artigo. As manifestações acabaram passando, mas deixaram sequelas. A situação do país se deteriorou.
A relativização das liberdades gera medo e resulta em uma aparente calmaria, com o esvaziamento das ruas, em uma espécie de “democracia sem povo”
Pois bem, 10 anos se passaram desde os protestos de junho 2013. Aconteceu muita coisa nesse período. Dilma sofreu impeachment. Michel Temer tentou implementar reformas que poderiam ter recolocado o país nos eixos, mas a sabotagem impiedosa ao seu governo, analisada neste artigo, resultou na ascensão e vitória de Bolsonaro. Veio a tragédia da Covid, seguida pela duríssima eleição de 2022, na qual muitos votaram em Lula por rejeição a Bolsonaro, e vice-versa.
Alckmin é hoje vice de seu antigo adversário, a quem já acusou de querer voltar à cena do crime. Ele abriu mão de disputar mais uma vez o governo de São Paulo em 2022, mas a tentativa do PT de conquistar a tríplice coroa falhou mais uma vez (já que Haddad foi derrotado no estado de São Paulo por Tarcisio de Freitas).
Alçado ao posto de ministro da Fazenda, Haddad é hoje desqualificado por parte da esquerda como um “neoliberal” e começa a cair no gosto dos agentes do mercado financeiro. Será mesmo? A guerra de narrativas é cada vez maior, está tudo muito confuso e enevoado.
Em 2023, o país está muito mais dividido e polarizado que em 2013. Apesar do esforço da grande mídia para apoiar o governo e da ajuda do Poder Judiciário, a insatisfação de metade da população é grande – e a credibilidade da mídia é menor.
Há, por outro lado, um ambiente de relativização de liberdades que eram dadas como absolutas, como a liberdade de expressão e a liberdade de manifestação. Nem passaria pela cabeça dos jovens que subiram no teto do Congresso Nacional em 17 de junho de 2013 que eles poderiam ser ser presos (em defesa da democracia).
Esse novo ambiente de relativização das liberdades gera medo e resulta em uma aparente calmaria, com o esvaziamento das ruas, em uma espécie de “democracia sem povo”. Mas gera também o aumento silencioso da irritação de uma parcela crescente da sociedade com os rumos que o país está tomando. Em quê isso tudo vai dar? Não tenho a menor ideia. Só o tempo vai dizer.