Como vimos no artigo anterior, “Um pensador de esquerda que precisa ser lido”, Louis Althusser investigou o papel da escola como aparelho ideológico de Estado, que reproduz os valores que mascaram e manipulam a representação da realidade - de maneira a perpetuar no poder e atender aos interesses de determinado campo político.
O filósofo se referia, criticamente, à escola no sistema capitalista, que também foi objeto de estudo de Pierre Bourdieu em livros como "A distinção". Mas parece evidente que basta inverter os sinais para aplicar o mesmo raciocínio à Escola com Partido, que ajuda a entender a persistência da força das esquerdas no Brasil e em outros países da América Latina.
A escola seria apenas um entre diferentes aparelhos ideológicos de Estado, mas Althusser já o considerava o mais importante deles (como foi a Igreja, no passado) na época da publicação de seu livreto sobre o tema, no final da década de 60.
Isso porque o sistema educacional realizaria duas funções indispensáveis para a reprodução do sistema social “burguês”: a reprodução de valores culturais associados à tradição e a reprodução da estrutura de classes baseada na exploração. Essas funções se realizavam, justamente, por meio de um projeto pedagógico de massa, que envolvia a doutrinação e a alienação dos estudantes ao longo de todo o ciclo escolar.
Escreve Althusser: “Ora, o que se aprende na escola? (...) A escola ensina também as ‘regras’ dos bons costumes: (...) regras da moral, da consciência cívica, (...) regras de respeito pela divisão social-técnica do trabalho, pela ordem estabelecida, pela dominação de classe”. O que se busca com isso é a “...reprodução da submissão (...) às regras da ordem estabelecida, isto é, uma reprodução da submissão à ideologia dominante. (...) Todos devem estar, de uma maneira ou de outra, ‘penetrados’ dessa ideologia, para desempenharem conscienciosamente a sua tarefa, quer de explorados (...), quer de exploradores (...).”
Pois bem, no Brasil, já há várias gerações, o que vem sendo posto em prática nas salas de aula e mesmo em muitas igrejas não é um trabalho de reprodução dos valores associados à tradição e à liberdade – que supostamente contribuiriam para a manutenção do status quo; mas, ao contrário, um lento e laborioso processo de consolidação de uma nova hegemonia, independente do sistema formal da política e em tudo contrária à tradição e à liberdade - começando pela liberdade de expressão.
É preciso ressaltar que esse processo não começou com a chegada do PT ao poder, em 2003. Ao longo das últimas quatro décadas, nas salas de aula das escolas e universidades públicas e privadas a ideologia sistematicamente difundida foi a da esquerda. Corações e mentes de sucessivas gerações de estudantes foram formatados para a futura conquista e ocupação do Estado por um partido de cunho socializante.
Esse processo tampouco se encerrou com a saída do PT do poder, em 2016: ele se prolonga a cada dia, com efeitos que ainda se farão sentir por muitos anos, mesmo que a esquerda não volte ao comando da nação - e mesmo que todos os exemplos do passado e do presente demonstrem de forma contundente que o socialismo sempre fracassa miseravelmente e sempre termina em censura, sofrimento e miséria.
Criou-se um ambiente em que vence quem fala mais alto, e no qual pequenos grupos ressentidos e barulhentos perseguem quem pensa de forma diferente e impõem sua vontade à maioria silenciosa, tudo na base do grito, da intimidação e do constrangimento
Esse fenômeno da apropriação, pela esquerda, da escola e da universidade como ferramentas do embate político e espaços de doutrinação não foi exclusividade do Brasil, mas aqui apresentou algumas peculiaridades.
Althusser fala do aprendizado da consciência cívica; ora, na Novilíngua da esquerda, “civismo” foi uma das palavras transformadas em palavrão. Não por acaso, a matéria “Educação Moral e Cívica”, que fazia parte dos currículos do ensino básico (com algumas variações na nomenclatura da matéria), foi abolida, com o pretexto de que ela estaria associada à ditadura militar.
Mas não se aboliu apenas uma disciplina escolar – fundamental para a formação das crianças por lhes ensinar coisas básicas: por exemplo, que a cada direito corresponde um dever, lição que não se aprende mais em sala de aula (hoje só se ensinam diretos, e nenhum dever). A própria ideia de civismo como um valor positivo foi exterminada: da mesma forma que a meritocracia, o civismo passou a ser percebido como algo negativo.
A verdade é que não há projeto de nação que possa dar certo sem civismo, isto é, sem aquele conjunto de atitudes e comportamentos, baseados em valores compartilhados, que os cidadãos assimilam e praticam na defesa do interesse comum, como um cimento indispensável para a vida em sociedade.
Nada disso existe mais, ou existe muito pouco: agora é cada um por si. Já não existem valores compartilhados: vivemos uma guerra de todos contra todos, que se aproxima perigosamente do estado de natureza descrito por Hobbes, no qual o medo é o sentimento dominante. O medo faz as pessoas agirem conforme a direção do vento, não conforme princípios e valores.
Mas não é só isso: a própria ideia de moral, que fazia par com a ideia de uma educação cívica, foi relativizada e distorcida a tal ponto que o próprio combate à corrupção passou a ser desqualificado como “moralista” por parte de certa militância.
Aos olhos das gerações de jovens formados na Escola com Partido, a ética passou a ser percebida como coisa de pequeno-burguês, e o carimbo de “moralista” na testa de quem defendia a Operação Lava-Jato, por exemplo, se tornou mais vergonhoso que o carimbo de “corrupto” na testa de determinados políticos “do bem”.
“Moralista”, no sentido negativo da palavra, também passou a ser considerada qualquer defesa da família, da disciplina, do sacrifício, da autoridade, da lealdade, da honestidade, em suma, de quaisquer instituições e valores identificados como conservadores – aliás, outra palavra torturada a ponto de ganhar um novo significado: "conservador" virou sinônimo de "opressor". Por sua vez, palavras como "censura", outrora nojentas, ganharam uma carga semântica positiva (se não a palavra, certamente a prática). É este o resultado de décadas de lavagem cerebral deliberada.
Rompidos os laços simbólicos entre as pessoas promovidos pela família, pelo senso de civismo e por uma educação universal de qualidade, cria-se uma sociedade dividida em tribos e facções sempre prontas a se agredir e devorar; um ambiente sem qualquer contrato social, no qual vence não quem tem os melhores argumentos, mas quem fala mais alto e se declara mais indignado e virtuoso.
O que prevalece hoje é um ambiente no qual pequenos grupos ressentidos e barulhentos se apropriam e distorcem bandeiras legítimas de minorias, perseguem quem pensa de forma diferente e impõem sua agenda e sua vontade à maioria ordeira e silenciosa da população – tudo na base do grito, da intimidação e do constrangimento – e com apoio da grande mídia, sabe-se lá com que interesses.
Isso está acontecendo todos os dias, diante dos nossos olhos: intelectuais e mesmo pessoas comuns que ainda teimam em remar na contracorrente do novo dogma são perseguidos, linchados moralmente, execrados publicamente e atirados na fogueira da nova Inquisição por hordas de militantes e inocentes úteis, empoderados pelas redes sociais e unidos na mesma baba de covardia e ódio (do bem).
Pensar com a própria cabeça virou um crime hediondo: nada de bom pode vir daí.
Esquerda tenta mudar regra eleitoral para impedir maioria conservadora no Senado após 2026
Falas de ministros do STF revelam pouco caso com princípios democráticos
Sob pressão do mercado e enfraquecido no governo, Haddad atravessa seu pior momento
Síria: o que esperar depois da queda da ditadura de Assad