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Livro de Marcia Tiburi entende a política como uma disputa entre o bem e o mal
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O título e o subtítulo de “Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo – Ou seja lá o nome que se queira dar ao mal que devemos superar” são reveladores. Em seu novo livro, Marcia Tiburi entende a política como uma disputa maniqueísta entre o “bem” – que ela julga representar – e o “mal”, que deve ser “derrotado”. No lugar da pretensa disposição para o diálogo presente no título de seu livro anterior, “Como conversar com um fascista”, explicitam-se aqui a disposição para eliminar adversários e a negação do reconhecimento do direito deles à existência. Na guerra entre “nós” e “eles” que o livro reafirma, não há espaço para a tolerância.

Embora o livro seja recheado de citações a Adorno, Horkheimer, Wittgenstein, Foucault e mais uma penca de pensadores responsáveis por obras de grande complexidade, as teses que a autora defende são assustadoramente simples, podendo mesmo ser reduzidas a três ou quatro clichês.  A sociedade brasileira, por exemplo, se divide entre pessoas “do bem”, que votam nos partidos de esquerda, e psicopatas analfabetos que, por burrice, maldade ou algum desvio de personalidade, elegeram um governo “turbotecnomachonazifascista”.

Outras premissas subjacentes ao texto: o capitalismo é um sistema malvadão que se compraz com o sofrimento e a morte dos pobres e das minorias; a democracia só está saudável quando elege partidos de esquerda; não existem alternativas de centro nem de centro-direita: todos os demais partidos são de extrema-direita e defensores da ditadura. Etc.

O livro pode ser entendido como uma ilustração estendida do famoso preceito atribuído a Lenin: “Acuse os adversários do que você faz; chame-os do que você é!”. Porque, da primeira à última página, a autora afirma pregar a tolerância, mas ofende e agride incessantemente todos aqueles que ousem pensar de forma diferente da sua.

Os mais de 57 milhões de brasileiros que elegeram Bolsonaro, por exemplo, são tratados como: imbecilizados, otários, desinformados, pessoas sem consciência, zumbis, incapazes de discernimento, ridículos, vulneráveis intelectualmente, grotescos, repugnantes, infames, massas hipnotizadas, pessoas entorpecidas e manipuladas.

Depreende-se que o objetivo dessa argumentação baseada em adjetivos não é convencer, esclarecer, persuadir nem conquistar esses eleitores, mas estigmatizá-los, colando nas suas testas o adesivo de fascistas (e desenhando nos seus peitos um alvo para os ataques das milícias do bem). Não que algum eleitor do atual presidente vá ler o livro de Marcia Tiburi, mas seguramente quem o fizer sairá da leitura ainda mais determinado a reeleger Bolsonaro.

O problema é que rigorosamente todos as críticas que a autora atribui ao campo da direita e conservador poderiam ter como objeto o campo progressista de esquerda que ela representa. Por exemplo, em determinada altura ela escreve que “é difícil argumentar com um sujeito tomado pelo fascismo. O fascismo é (...) uma espécie de paixão ou religião fanática”. Qualquer semelhança com o lulopetismo não é mera coincidência: é muito difícil argumentar com um militante petista – a diferença é que os “fascistas” só são fascistas na cabeça dos petistas.

Tiburi descreve o governo Bolsonaro como “um governo terraplanista e negacionista”, que erigiu “um ex-astrólogo a filósofo e a guru de Estado”. Somente a má-fé explica qualificar o governo como terraplanista, e imagino que o guru a quem a autora se refere é Olavo de Carvalho – o que revela um preconceito contra a astrologia que não parece adequado para uma autora “do bem”.

Em outro momento, ela fala da “estratégia de produção de inimigos”, e me lembrei imediatamente de como os governos do PT jogaram deliberadamente brasileiros contra brasileiros, transformando as “elites brancas” em inimigos a abater (mas só de mentirinha, porque as verdadeiras elites brancas estavam fazendo excelentes negócios com aqueles governos).

Segundo a autora, a saudação nazista com a mão erguida já vem sendo usada no Brasil, "em contextos variados"

Papel aceita qualquer coisa. Um exemplo da falta de rigor do livro é a afirmação de que Steve Bannon, ex-estrategista de Trump “de extrema-direita” (desnecessário dizer) está atualmente preso por fraude. Não está. Ele passou um dia na prisão, em 20 de agosto, e ainda não foi julgado – ao contrário, aliás, do ídolo da autora, Lula, que já foi julgado e condenado, em mais de uma instância, em vários processos.

Outro exemplo é a denúncia do genocídio de crianças e jovens negros pela polícia, ignorando o fato de que o número de assassinatos no país diminuiu drasticamente neste governo, depois de ter batido o espantoso recorde de 61.000 durante o governo Dilma, em 2016 (em 2019, foram cerca de 41.000, uma queda de mais de 30%). Mas números e fatos são detalhes sem importância.

A autora também ignora solenemente, é claro, o fato de que o auxílio-emergencial do governo Bolsonaro reduziu a pobreza extrema no Brasil ao menor nível em 40 anos, isso em plena pandemia.

Não vou nem comentar as referências ao “golpe” de 2016: “Dilma foi deposta sem que tivesse cometido qualquer crime de responsabilidade. Até mesmo aqueles que votaram contra Dilma sabiam que ela era inocente”. Aham. Nenhuma palavra sobre as maiores manifestações populares da História pedindo a saída da presidente que destruiu a economia, trouxe de volta a inflação e a recessão e levou milhões de brasileiros ao desemprego (e isso sem nenhuma pandemia).

É digno de nota a autora citar o “ódio às religiões”, quando ela própria agride os evangélicos em vários trechos do livro. Ora, ou a tolerância religiosa se aplica a todas as religiões ou não se aplica a nenhuma. Mas o ódio progressista à Igreja evangélica é compreensível, já que os políticos evangélicos “do mal”, que vivem na periferia e convivem com brasileiros comuns, a cada eleição tiram mais votos dos políticos virtuosos de esquerda, que não saem dos bairros ricos onde vivem – isso quando não moram em Paris).

A coisa fica mais grave quando, em uma espiral delirante, a autora escreve, sem qualquer fundamentação, que a operação Lava-Jato foi “conduzida de maneira corrupta”. Ou que a Escola sem Partido é um movimento que tenta “criminalizar a esquerda e a democracia”. Ou, pior ainda, quando afirma o seguinte: “A saudação nazista com a mão erguida (...) já vem sendo usada no Brasil em contextos variados”. Oi? Mesmo? Onde foi que ela viu isso? No parágrafo seguinte, a autora equipara o slogan “Heil Hitler!” a “Make America great again!” e “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O que dizer?

Minha interpretação é que se trata da projeção de um desejo recalcado: a autora, como muitos intelectuais de esquerda, deseja inconscientemente um governo nazista, para que possam odiá-lo e se fazer de vítimas. Não apenas nazista, aliás: seu sonho é se deparar com um governo “turbotecnomachonazifascista”, para justificar todo o ódio do bem com que os virtuosos das redes sociais perseguem, esfolam e destroem seus adversários políticos e cancelam diariamente artistas que não rezam pela sua cartilha.

Mas, a não ser que se trate assumidamente de uma ficção, escrever que brasileiros estão se cumprimentando com a saudação nazista “em contextos variados” é, simplesmente, disseminar fake news – uma acusação que a esquerda faz de forma exaustiva à direita. Aliás, não foi um nazista que disse que uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade? O campo autodenominado progressista aprendeu bem a lição.

Esse campo só não aprendeu que os brasileiros comuns que eles teimam em rotular de fascistas não odeiam ninguém. Esses brasileiros estão apenas de saco cheio de serem massa de manobra de um projeto de perpetuação no (ou de retorno ao) poder daqueles para quem a miséria e o preconceito são combustíveis, sem os quais não conseguem sobreviver. Por isso mesmo, quanto mais miséria e preconceito melhor: eles não querem resolver esses problemas, porque esses problemas são seu alimento.

Os brasileiros comuns estão de saco cheio, também, de partidos e políticos que dividem deliberadamente a sociedade em "nós" e "eles"– talvez porque tenham entendido, de uma maneira muito profunda, que a política, ao contrário do que parece pensar Marcia Tiburi, não é uma disputa entre o bem e o mal. Muito menos no Brasil.

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