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Não é fácil manter a serenidade e a saúde mental em situações anormais como a que estamos vivendo. Diante de um cenário desconhecido e ameaçador, reforçamos nossa tendência demasiado humana a cair em armadilhas do pensamento bastante comuns, que mesmo em tempos de normalidade nos levam a conclusões e comportamentos irracionais. São os chamados “vieses cognitivos”, atalhos ou filtros mentais que atuam no inconsciente e nos fazem processar as informações que recebemos de maneira equivocada. Isso afeta a formação de nossos julgamentos e crenças e nosso processo de tomada de decisões, gerando uma predisposição a escolhas erradas.
Ninguém está livre do autoengano, da tendência a distorcer a realidade para adequá-la às nossas convicções, expectativas ou desejos (o chamado “viés de confirmação”): basta dar uma olhada nas redes sociais para ver que praticamente todo mundo faz isso. Mas, se você não ficar atento, este hábito pode atrapalhar bastante a sua vida, levando a decisões ruins ou mesmo a fracassos irremediáveis.
Vieses cognitivos costumam ser explorados, por exemplo, pelos discursos da publicidade e da política, que seduzem seus respectivos públicos por meio de mensagens que reforçam crenças estabelecidas, dizendo o que eles querem ou precisam ouvir – com o único objetivo de vender um determinado produto (ou um determinado candidato).
Em “A arte de pensar claramente – Como evitar as armadilhas do pensamento e tomar decisões de forma mais eficaz”, o escritor e empresário alemão Rolf Dobelli examina 100 truques psicológicos que podem comprometer a nossa interpretação da realidade. Os capítulos são bastante curtos, com três páginas em média. Embora não se apresente exatamente como um livro de autoajuda, sua leitura pode ser bastante útil, tanto nas decisões relacionadas a problemas pessoais quanto em negociações profissionais ou na formulação de estratégias financeiras.
Não é um livro sobre pensamento positivo, e sim sobre “conhecimento negativo”: ele explica o que você não deve fazer se quiser pensar de forma mais clara. Alguns vieses cognitivos abordados parecem banais, mas outros são contra-intuitivos; por exemplo, nós tendemos a preferir uma informação errada a não ter informação alguma. É isso que vem acontecendo, por exemplo, com a percepção do coronavírus, com as pessoas se agarrando a informações equivocadas ou irrelevantes que confirmem a sua opinião. É o que faz quem se limita a compartilhar casos de falso óbito, como se eles invalidassem a gravidade da pandemia.
Seguem alguns trechos ilustrativos das falhas mentais examinadas em “A arte de pensar claramente”:
Viés de sobrevivência
“Como, no dia a dia, o sucesso produz maior visibilidade que o fracasso, você superestima sistematicamente a perspectiva de sucesso”.
Ilusão do corpo de nadador
“Os nadadores profissionais têm esse corpo perfeito não porque treinam muito. É o oposto. São bons nadadores porque são feitos assim. Sua constituição física é um critério seletivo, não o resultado de suas atividades”.
Efeito do excesso de confiança
“Segundo algumas pesquisas, 84% dos franceses do sexo masculino dizem ser bons amantes acima da média. Sem o efeito do excesso de confiança, deveriam ser exatamente 50% – faz sentido, afinal “média” significa que 50% estão acima e 50%, abaixo dela.
Prova social
“Comporto-me de modo correto quando me comporto como os outros. Em outros termos: quanto mais pessoas acharem uma ideia correta, mais correta essa ideia será – o que, naturalmente, é um absurdo”.
Falácia do custo irrecuperável
“Existem muitas boas razões para continuar a investir e não dar fim a alguma coisa. Mas existe uma razão ruim: levar em conta o que já foi investido. Decidir racionalmente significa ignorar os custos acumulados. Pouco importa o que você já investiu: a única coisa que conta é o agora e sua estimativa do futuro”.
Viés da reciprocidade
“Recentemente, uma mulher me explicou por que não deixa que nenhum homem lhe pague uma bebida no bar: ‘Porque não quero ter essa obrigação subconsciente de ir para a cama com ele”.
Viés de confirmação
“A tendência de interpretar novas informações de modo que sejam compatíveis com nossas teorias, visões de mundo e convicções”.
Viés de autoridade
“Obedecemos às autoridades, mesmo quando, do ponto de vista racional ou moral, isso não faz nenhum sentido”.
Efeito de contraste
“Se você é mulher e está procurando um marido, não saia acompanhada de sua amiga modelo. Os homens vão achar você menos atraente do que na verdade você é. Saia sozinha. Melhor ainda: leve duas amigas feias para a festa”.
Viés de disponibilidade
“Fazemos uma ideia do mundo com base na facilidade com a qual exemplos nos ocorrem. O que, evidentemente, é uma tolice, pois na realidade algo não ocorre com mais frequência só porque podemos imaginá-lo mais facilmente”.
P.S.: “A arte de pensar claramente” foi acusado de plagiar ideias de Nassim Nicholas Taleb apresentadas em livros como “O cisne negro” e “Iludidos pelo acaso”. Isso me parece estranho: é claro que nem Taleb nem Dobelli descobriram ou inventaram nada: trata-se de um conhecimento consolidado ao longo de décadas por pesquisadores de diferentes áreas, da psicologia e da neurociência à economia comportamental. O mérito de Dobelli como autor não está na originalidade do conteúdo, mas na forma clara como ele compila, mapeia e exemplifica, com situações cotidianas, como funcionam os vieses cognitivos – e ele já foi elogiado pelo próprio Taleb.
A arte de pensar claramente – Como evitar as armadilhas do pensamento e tomar decisões de forma mais eficaz de Rolf Dobelli. Tradução de Karina Janini e Flávia Assis. Editora Objetiva, 320 págs. R$ 42,90