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O golpe que foi supostamente planejado e abortado dois anos atrás, em dezembro de 2022, combina elementos de tragédia, farsa e comédia pastelão – resta saber em que proporção. Escrevo “supostamente” porque o caso ainda não foi julgado, e sou do tempo em que não cabia a jornalistas (nem a juízes) antecipar conclusões.
Mas já dá para fazer alguns comentários. A espetacularização do indiciamento dos (supostos) golpistas pela mídia, na semana que passou, parece ter tido como intuito criar um clima de comoção nacional, propício, talvez, a outras medidas mais graves. Se o objetivo era mesmo este, o resultado foi frustrante.
Tal atmosfera não se consolidou. Em parte, porque os brasileiros comuns estão descrentes e desconfiados das instituições e da grande mídia. Em parte, porque os brasileiros comuns estão mais preocupados com o medo de assalto e com o preço dos alimentos do que com a alardeada defesa da democracia. Eles querem, talvez, virar a página da polarização política sem fim e focar no que realmente interessa.
Mas a atmosfera prevista também não se consolidou, em parte, porque os elementos involuntariamente cômicos do episódio acabaram prevalecendo, na percepção daqueles mesmos brasileiros comuns.
Basta citar o fato de que a grave tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito fracassou porque um dos golpistas não conseguiu... pegar um táxi (ainda bem que ele não pensou em pedir um Uber, me ocorreu na hora em que li a notícia). Ou que os alvos da ação (que não aconteceu) eram Jeca, Joca e Juca. “Huguinho, Zezinho e Luizinho” seria mais criativo.
Fica difícil levar a sério golpistas assim. Os envolvidos parecem mais vocacionados para um programa humorístico que para qualquer conspiração política ou militar digna do nome.
O episódio todo me trouxe à lembrança uma franquia de comédia dos anos 80 e 90, “Loucademia de Polícia”, marcada por personagens atrapalhados, situações absurdas e planos mirabolantes que nunca davam certo.
No universo da Loucademia, as missões dos cadetes invariavelmente descambavam para o vexame, por total incompetência. A imagem de conspiradores tentando desesperadamente pegar um táxi para consumar um golpe é tão surreal que poderia aparecer em um dos filmes da franquia.
“Loucademia de Polícia” tem como premissa a remoção, pela prefeita de uma grande cidade, dos rigorosos critérios de admissão na academia de formação de policiais. Perde-se, assim, a régua da razoabilidade: qualquer pessoa, independente de preparo ou aptidão, pode se tornar um oficial da lei. Isso leva a uma invasão de candidatos desajeitados, preguiçosos, ineptos e inadequados para a carreira.
Não se pode esperar bom senso, moderação e equilíbrio de golpistas tresloucados, mas estes são traços indispensáveis em jornalistas e juízes
Pois bem, os golpistas brasileiros poderiam ter saído de uma “Loucademia do golpe” – o que, evidentemente, não os exime de julgamento e eventual punição. Mas as consequências de seu plano tabajara – que, é necessário enfatizar, não chegou a se consumar (e, portanto, segundo muitos juristas, sequer constitui crime) – não deveriam extrapolar o bom senso e os limites da lei.
Também já é quase um consenso que os golpistas não deveriam ser julgados por suas potenciais vítimas – até para se evitar o risco de uma futura anulação, quando o vento virar de novo (e no Brasil o vento vira). Outros processos já foram anulados por muito menos.
Para que o país volte à normalidade, é preciso resgatar a régua do bom senso e da proporcionalidade. A própria grande mídia já vem reconhecendo isso.
É o caso, por exemplo, de um recente editorial da “Folha de S.Paulo”, intitulado “Suspeitas graves exigem tanto rigor como equilíbrio”. O editorial pede moderação e afirma a necessidade de se restabelecer a “normalidade do trâmite judicial”. Ora, se é preciso “restabelecer a normalidade”, a conclusão necessária é que o trâmite não vem sendo respeitado. É a própria “Folha” quem está dizendo.
Não se pode esperar bom senso, moderação e equilíbrio de golpistas tresloucados, mas de jornalistas e de juízes sim: são traços que, neles, não podem faltar. Mas a mesma régua que parece perdida pelo Judiciário, aos olhos do cidadão comum, quando, por exemplo, se mantém na prisão há quase dois anos uma mãe de crianças pequenas, pelo crime de escrever com batom uma frase em uma estátua, também está faltando à grande mídia.
Sinal disso é um vídeo que viralizou nos últimos dias, que mostrava jornalistas encenando o planejamento da cobertura do "golpe do táxi". O vídeo era surpreendentemente amador. O roteiro era tosco, os atores um canastrões e a dramaticidade falsa. As manifestações de vergonha alheia nas redes sociais (precisamos regular as redes sociais!) foram tantas que os próprios responsáveis pelo vídeo decidiram apagá-lo.
Mas o problema não é o amadorismo. O problema é que, naquilo que realmente importa, o vídeo só exagerou um pouquinho. Chamou a atenção por mostrar os bastidores da redação de um telejornal, o ambiente por trás das câmeras, que as pessoas comuns desconhecem.
Mas, no fundo, o que o vídeo mostra não é muito diferente daquilo a que assistimos diariamente: o jornalismo como encenação, como ficção mal escrita; os jornalistas como intérpretes que aceitam qualquer papel, em uma trama na qual cada vez menos pessoas acreditam. Ora, não eram esses mesmos jornalistas que, em um passado recente, defendiam a Operação Lava-Jato e diziam que... Melhor deixar para lá.
Quando os jornalistas se comportam como atores, é até melhor que sejam péssimos, porque assim fica evidente que se trata de uma encenação. Pior é quando os atores são bons, quando o jornalismo é encenado e finge que não é.
Em todo caso, a pergunta que importa fazer é: quem patrocina o espetáculo está satisfeito com o resultado? Porque, ao contrário da audiência de “Loucademia de Polícia” nos anos 80, boa parte da plateia parece não estar achando a menor graça na comédia involuntária que se desenrola hoje diante de seus olhos - enquanto sua vida, na prática, só piora.
Essa parcela da população está cansada de sobressaltos e frases de efeito. Em vez de jogar mais gasolina no incêndio, talvez fosse o momento de os poderosos de plantão fazerem uma pausa e se perguntar: essa estratégia está dando certo? Por que, então, teimar nesse caminho, que só divide e envenena ainda mais o país?
No mundo das artes e espetáculos, ignorar a reação da plateia pode funcionar por algum tempo. Mas é uma receita infalível para o inevitável fracasso, porque, no final das contas, é a plateia que paga o ingresso. E ela pode, democraticamente, decidir assistir a outro espetáculo, com outro elenco, quando o momento chegar.
Conteúdo editado por: Aline Menezes