| Foto: Reprodução Instagram
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E não é que um ministro do Supremo me fez voltar a Machado de Assis na semana que passou? Reli, para ser mais preciso, os breves capítulos de “Memórias póstumas de Brás Cubas” que fazem referência a uma genial descoberta do narrador/protagonista: a lei da equivalência das janelas.

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“Assim, eu, Brás Cubas, descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência.”

Dois episódios do romance esclarecem como a lei funciona. No primeiro, Brás Cubas encontra na rua uma meia dobra, moeda sem muito valor, e a enfia no bolso. Na manhã seguinte, sente uns repelões da consciência:

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“...uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei uma carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do verdadeiro dono. Mandei a carta e almocei tranquilo, posso até dizer que jubiloso.”

No segundo episódio, caminhando pela Praia de Botafogo, Brás Cubas esbarra em um embrulho misterioso, que leva para casa. O embrulho contém cinco contos de réis, uma pequena fortuna. Após um breve embate com sua consciência, o narrador decide ficar com o dinheiro, porque a boa ação da véspera (a devolução da moeda sem valor) criara, por assim, dizer, um crédito moral, que ele podia agora resgatar:

“De noite, no dia seguinte, em toda aquela semana pensei o menos que pude nos cinco contos, e até confesso que os deixei muito quietinhos na gaveta da secretária.  (...) Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência.

- Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa assim... hei de ver...

Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado que a coisa não valia a pena de tamanho estrondo; louvaram-me então a modéstia.”

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(A “ação boa”, vejam só, acaba sendo a compra do silêncio de Dona Plácida, alcoviteira que dará cobertura aos amores adúlteros de Brás Cubas com Virgília, uma mulher casada.)

Machado de Assis revela com ironia a duplicidade de Brás Cubas – e, por extensão, a relatividade moral que parece ser um traço distintivo do nosso caráter nacional

É assim que funciona a lei da equivalência das janelas: pequenas boas ações, sobretudo se bastante divulgadas, compensam grandes e muitas más ações. Se a consciência pesar por causa de um grande mal causado, basta lembrar o pequeno bem que foi feito, para arejá-la. Trata-se, evidentemente, de uma falsa equivalência.

Por meio dessa lei universal do comportamento humano descoberta por Brás Cubas, Machado de Assis revela com ironia a duplicidade do personagem – e, por extensão, a relatividade moral que parece ser um traço distintivo do nosso caráter nacional.

A lei, aliás, permanece atualíssima.

Pensei em Machado de Assis, em Brás Cubas e na lei da equivalência das janelas quando li que o STF, depois de enquadrar um sem-número de apoiadores do governo; depois de censurar e desmonetizar canais conservadores do Youtube; depois de intimidar e silenciar jornalistas; depois de tornar réus manifestantes por crime de opinião; depois de mandar prender e colocar tornozeleiras eletrônicas em deputados no exercício do mandato; depois, em suma, de mandar às favas o direito à liberdade de expressão consagrado no Artigo 220 da Constituição - tudo isso com base no misterioso inquérito das fake news (mais misterioso que o embrulho encontrado por Brás Cubas, já que até hoje ninguém conhece seu conteúdo) - decidiu mandar bloquear perfis do PCO – Partido da Causa Operária nas redes sociais.

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Imagino que, com isso, se pretenda demonstrar alguma isenção na condução do chamado inquérito do fim do mundo”: de agora em diante, frente a qualquer insinuação de parcialidade por parte do STF, a resposta estará na ponta da língua: “Ah, mas eu também enquadrei a esquerda, bloqueei as redes sociais do PCO!”

Imediatamente associei o gesto do STF à atitude do imortal personagem de Machado de Assis. Pois o gênio da lei da equivalência das janelas reside justamente aí, na total falta de equivalência: para afastar repelões da consciência causados por erros enormes, basta um pequeno acerto.

(Aqui, na verdade, nem de acerto, grande ou pequeno, se trata, já que tirar a voz de um partido político na internet apenas cria mais um precedente perigoso em ano de eleição.)

Além disso, não dá para comparar o bloqueio dos perfis de um partido de extrema-esquerda no Facebook e no Tik Tok à perseguição implacável movida contra o governo e seus apoiadores. Temos aqui mais uma falsa equivalência, pois não se trata de coibir dois extremos: pois somente com muita ignorância ou má-fé se pode classificar o governo de Bolsonaro e a política econômica de Paulo Guedes como sendo de direita na mesma medida em que o PCO é de esquerda. A não ser que se tenha tornado normal classificar como fascista e de extrema-direita qualquer pessoa ou partido à direita do lulopetismo.

Tempos muito estranhos. Agradeço, em todo caso, ao STF, por me fazer voltar a ler Machado de Assis.

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