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Para apreciar “The English Game”, minissérie em seis episódios da Netflix sobre as origens do futebol profissional na Inglaterra vitoriana, é necessário ir além das aparências. À primeira vista, pode parecer uma série lacradora, que usa o esporte como pretexto para exaltar as virtudes da classe operária e satanizar a malvada elite exploradora, proprietária dos meios de produção. Não é bem assim, como veremos a seguir. A narrativa examina com alguma ambiguidade como o esporte que se tornou o mais popular do planeta atravessou e modificou as relações entre ricos e pobres no país que era o centro do capitalismo na época. O futebol aparece mais como uma ponte que como um muro entre as classes sociais.
Baseada em uma história real, a série foi concebida por Julian Fellowes, o mesmo criador de “Downton Abbey” (e também diretor do longa “Gosford Park”). Os protagonistas são os dois jogadores que foram os principais responsáveis pela modernização do futebol: o operário Fergus Suter (Kevin Guthrie) e o aristocrata Arthur Kinnaird (Edward Holcroft). Separados por um abismo social, os dois têm em comum o espirito de liderança e o talento com a bola nos pés.
É fácil identificar elementos em comum com “Downton Abbey”: no desenho dos personagens, no esmero da reconstituição de época, na maneira novelística de estruturar os episódios narrativa. Para os menos jovens, uma boa referência da atmosfera da série é o longa “Carruagens de fogo” (1981), que também abordou os primórdios do esporte (no caso, a corrida) como ponto de partida para um comentário social.
A ação começa em 1879, quando o futebol era um esporte amador, dominado pela elite e conhecido como um “jogo de cavalheiros”. James Walsh, dono de uma pequena usina de algodão em Darwen, Lancashire, convida para jogar no time local Suter e seu amigo Jimmy Love, de Glasgow, na Escócia. O problema é que os dois passam a receber salários para compor o elenco do time, o que era proibido.
Pesquisadores do futebol apontaram algumas liberdades poéticas da série – por exemplo, ao fundir dois times reais, o Blackburn Olympic e o Blackburn Rovers, no fictício Blackburn FC, onde Suter passa a jogar depois de deixar Darwen). E vários personagens secundários de fato existiram, mas a maior parte do que acontece nos subplots é simplesmente ficção. Mas isso não tem a menor importância.
As sequências com a bola em jogo são interessantes por mostrar como o futebol era um esporte sem regras formais, rudimentar, violento e caótico, próximo do rugby: basta dizer que o sistema geralmente empregado era o 1-1-8, com oito atacantes aglomerados distribuindo chutes, não apenas na bola. Mas o miolo da série é basicamente “character-driven drama”, isto é, uma narrativa estruturada com base em conflitos individuais.
Como em “Downton Abbey”, são esses conflitos que interessam: o contexto social é evidentemente relevante, mas não é estruturante do caráter dos personagens. Tanto entre os aristocratas quando entre os criados (em “Downton”), e tanto entre os donos quanto entre os proprietários das fábricas (em “The English Game”), há pessoas generosas e mesquinhas, inteligentes e burras, corajosas e covardes, empreendedoras e preguiçosas. Não poderia haver nada menos esquerdista que essa ênfase nas escolhas e destinos individuais, em oposição a um entendimento do mundo como dividido entre vilões exploradores e vítimas exploradas.
É claro que, como drama de época, “The English Game” mostra aspectos negativos daquele estágio do capitalismo industrial: rotina de trabalho insana em fábricas horríveis, inexistência de garantias trabalhistas (uma jovem operária é simplesmente demitida quando descobrem que ela está grávida), cortes de salário aleatórios, repressão violenta às greves. Mas, de forma deliberada ou não, o roteiro de “The English Game” também mostra como, já naquele momento, o sistema era inclusivo e aberto à mudança, ao promover a competição e a inovação.
(Pequena digressão: a competição, traço essencial do futebol, explica seu sucesso planetário. Dentro de campo não tem cota para quem joga mal, nem medidas compensatórias, nem dívidas históricas a serem resgatadas. O juiz não é um justiceiro social: vence o melhor. Há regras igualmente aplicadas a todos, o império da lei funciona. Há incentivos para derrotar o adversário, não tem mimimi. Pode ser a seleção brasileira em campo: se jogar mal, leva um 7 a 1. Mas, do jeito que as coisas caminham, no futuro todas as partidas terminarão obrigatoriamente empatadas, para não criar traumas emocionais nos torcedores do time perdedor.)
A FA (Football Association) Cup, o campeonato nacional inglês, era extremamente democrático: nada menos que 147 times se inscreveram na edição de 1879, a maioria deles de operários. De origem humilde, Suter, que se tornou o primeiro jogador profissional da História, era exaltado por ricos e pobres como o homem que estava transformando o esporte, ao adotar um estilo de jogo menos físico e baseado na força bruta e mais técnico e estratégico. Revolucionando a maneira como os times se comportavam em campo, ele criou conceitos táticos que sobrevivem até hoje – e foi recompensado pelo valor de seu esforço e de suas ideias.
Ou seja, o futebol, a partir do momento retratado na série, deixou de ser um passatempo de esnobes e válvula de escape para as agruras da vida operária para se tornar uma oportunidade para mudar de vida, bastando para isso talento e força de vontade, qualidades que independem da classe social em que se nasce. Como Suter, centenas de outros jogadores saíram das regiões mais pobres do Reino Unido para ascender socialmente por meio do futebol, mesmo na elitista sociedade vitoriana. Resumindo: talvez involuntariamente, “The English Game” exalta a meritocracia, que é uma espécie de palavrão para a esquerda.
As relações difíceis dos dois protagonistas com seus respectivos pais – o pai alcoólatra e violento de Suter, o pai ausente e frio de Kinnaird – rendem bons momentos na série. Em um diálogo marcante, Kinnaird censura o pai pela sua distância, e o pai responde na lata, lembrando os privilégios que Kinnaird teve: “Você não vai querer que eu me sinta culpado pela infância que você teve, vai?” Talvez a intenção do roteirista não tenha sido essa, mas a cena desmonta a atitude do jovem rico sensível e de consciência pesada, que desmorona diante da lembrança de seu papel social.
“Não complique as coisas”, aconselha serenamente o pai de Kinnaird. “O seu papel é o de ser provedor da sua família, o homem da casa.” Já Suter, que teria mais motivos para carregar um trauma de infância por causa do pai que lhe enchia de sopapos, também é repreendido pela operária Martha, uma mãe solteira que enfrenta corajosamente suas dificuldades: “Você não pode deixar a lembrança do seu pai determinar o rumo da sua vida”. Nos dois casos, os protagonistas são chamados a se comportar como homens adultos, não como vítimas de suas histórias.
Outro diálogo digno de nota: quando Suter pressiona o patrão a enfrentar a guilda que decidiu reduzir os salários dos funcionários da fábrica, seu chefe explica que, se fizer isso, todos que estão reclamando da redução salarial ficarão sem nada, simplesmente porque a usina vai fechar: sem usina, sem emprego, sem futebol. Simples assim. A solução passa por uma negociação adulta e pela compreensão das leis econômicas: o problema era a super-oferta de mão-de-obra diante de uma demanda decrescente, e a solução seria a redução de salário e de jornada – tema que soa terrivelmente familiar no Brasil de hoje.