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Contava-se algum tempo atrás, em tom de piada, a história de um prefeito que, indignado diante do parecer de um engenheiro sobre determinada obra, impossível de ser realizada devido à lei da gravidade, reagiu baixando um decreto que revogava a tal lei.
Desconfio que esse episódio do nosso folclore político foi esquecido porque ele deixou de ser engraçado: hoje está na moda – e é até considerado bonito – acreditar que se pode ignorar a realidade, o bom senso e até as leis da natureza para adequar o mundo aos nossos desejos e caprichos. E ai de quem disser que não.
Veja bem, defendo o direito do prefeito de acreditar no que quiser, como aliás defendo o direito de alguém acreditar em Lula ou no terraplanismo, mesmo não compartilhando nenhuma dessas crenças. O que não pode é o prefeito querer impor a sua convicção ao restante da sociedade, levando adiante uma obra que não pode acabar bem.
Mas parece que estamos vivendo em uma época na qual convicções particulares são cotidianamente impostas por decreto ao conjunto da sociedade, com o silêncio complacente (ou o apoio entusiasmado) da mídia, dos políticos e até dos intelectuais – a quem caberia, em um mundo normal, chamar as pessoas à razão.
Isso também não pode acabar bem, mas tem sido assim em todas as áreas: integrantes de determinado grupo de interesse minoritário estabelecem que o círculo é quadrado e, por meio do constrangimento, da ameaça de sanções sociais e de muita gritaria, exigem que todos levem a sério a tese esdrúxula – e ficam muito ofendidos quando alguém os contesta.
Ato contínuo, a nova verdade sobre o círculo se espalha rapidamente nas redes sociais, e quando você se dá conta já virou lei: quem disser que o círculo é redondo está sujeito a ser multado, ou coisa pior. Se reincidir, vai preso por desrespeito à minoria quadratista.
Você acha que estou exagerando? Na Flórida e na Califórnia já tentaram aprovar leis que criminalizam o uso “errado” dos pronomes de tratamento. A ideia era obrigar as pessoas a usar pronomes correspondentes à autopercepção de gênero do interlocutor (digo, dx interlocutorx, ou de interlocutore, sei lá, as regras mudam toda hora). Os projetos de lei previam multas de milhares de dólares para quem inadvertidamente chamasse um indivíduo agênero de “ele” em vez de “elu” (ou usasse “dele” em vez de “delu”).
Algo assim só é possivel porque hoje, particularmente nas questões identitárias, o pensamento tem que ser único, a adesão tem que ser incondicional: quem discordar é sumariamente cancelado. Então, mesmo se você pertencer a uma minoria, pense duas vezes antes de fazer qualquer comentário que exija alguma interpretação de texto sobre um assunto polêmico, ou aguente as consequências.
E não me venha falar em liberdade de expressão, seu fascista! É assim que funciona na nova democracia, não te contaram? Você só é livre para expressar a mesma coisa que todo mundo expressa. Debates só são autorizados quando todos os participantes expressam a mesma opinião.
Basta assistir às mesas-redondas sobre política na TV, verdadeiras festas da democracia, nas quais todos os convidados têm exatamente a mesma opinião sobre o governo. Debate bom é assim, sem fascista enchendo o saco.
Não me venha falar em liberdade de expressão, seu fascista! É assim que funciona na nova democracia, não te contaram? Você só é livre para expressar a mesma coisa que todo mundo expressa
Pois bem, já escrevi pra caramba e ainda não falei sobre a moça da foto que ilustra este artigo. É a nadadora Lia Thomas, que até a semana passada vinha quebrando recorde atrás de recorde nas piscinas, em competições femininas nos Estados Unidos.
Lia nasceu homem. Como nadador, foi um atleta medíocre. Depois que decidiu se identificar como mulher e fazer a chamada transição de gênero, virou uma atleta de ponta. É claro que isso tem a ver com a estrutura óssea, a massa muscular e outros fatores decorrentes de ela ter nascido homem, e não mulher. A biologia importa. Ou não?
“Ah, mas tem protocolo de medição de testosterona”. Aham, a única diferença entre um homem e uma mulher é a quantidade de testosterona no corpo. Alguém acredita sinceramente nisso? Alguém acredita, de coração, que não é injusto mulheres competirem com atletas que nasceram homens? Você pode até dizer que sim, em público, para ficar bem na fita, mas acredita mesmo?
Mas é isso que vem acontecendo, com o apoio entusiasmado do progressismo virtuoso, em inúmeras categorias esportivas, inclusive levantamento de peso, tema tratado neste artigo, e até, pasmem, no MMA. Já em 2014, o lutador transgênero Fallon Fox espancou e fraturou o crânio de sua adversária Tamika Brents, uma mulher – um tipo de fratura que jamais se viu em lutas de MMA entre duas mulheres nascidas mulheres.
Vou me limitar a transcrever as declarações que Tamika e Paul Costa, lutador do UFC, deram logo após o combate:
Tamika Brents: “Tenho lutado com muitas mulheres e nunca senti a força que senti numa luta como aquela noite. Não posso responder se é porque ela nasceu homem ou não, porque eu não sou médico. Só posso dizer que nunca me senti tão dominada na minha vida e que sou uma mulher anormalmente forte”.
Paul Costa: “Ela nasceu um homem, (...) é uma covardia absurda, (...) ela simplesmente aniquilou as garotas que lutaram contra ela. Elas foram massacradas, colocaram suas vidas em risco, colocaram sua integridade física em risco. Eu não quero entrar no aspecto pessoal de sua escolha, ser transexual ou não, homossexual ou não. O que acontece aqui é que um homem está lutando contra as meninas, contra as mulheres, como se fosse uma. Isso é absurdo, e não pode ser aceito”.
Tamika Brents e Paul Costa deveriam ser cancelados e esfolados por transfobia? Ou o que eles disseram faz algum sentido?
Muita gente que, no passado, comprou a bandeira das atletas trans na melhor das intenções acabou percebendo que, na verdade, estava apoiando uma causa injusta
Mas Lia Thomas – que, aliás, já se envolveu em uma polêmica com colegas de equipe por exibir sua genitália masculina no vestiário – não vai mais poder competir com mulheres que nasceram mulheres. Ontem, depois de anos de debates (era uma questão muito complexa), a FINA, a entidade que rege a natação mundial, determinou que será criada uma categoria específica, aberta para atletas trans.
Ou seja, mulher trans competindo com “mulher cis” (mulher-mulher) não vai rolar mais: atletas trans estão banidas das competições oficiais femininas. Não vão mais nadar de braçada.
Haverá reação? Desconfio que será modesta. Muita gente que, no passado, comprou a bandeira das atletas trans na melhor das intenções acabou percebendo que, na verdade, estava apoiando uma causa injusta, que destruía a isonomia nas competições esportivas.
Aliás, esse padrão se repete em muitas situações fora do esporte: usa-se uma bandeira legítima (como o combate à desigualdade ou a defesa das minorias) para cooptar o apoio do cidadão comum, por exemplo, a uma perseguição – e só lá na frente o cidadão comum percebe que foi usado como inocente útil em uma agenda política, ou que foi cúmplice de uma covardia. Mas aí o mal já está feito.
A decisão da FINA pode representar o começo do fim de um longo período de hipnose coletiva que começou lá atrás. Lembro, por exemplo, que em 2019 o técnico de vôlei Bernardinho, campeão olímpico e lenda viva do esporte brasileiro, teve que se retratar por ter reagido de forma espontânea, durante uma partida, ao vigésimo-oitavo ponto marcado por uma vigorosa atleta trans da equipe adversária.
Não foi sequer uma declaração pública, foi uma fala que teve que ser decifrada por meio de leitura labial. Ainda assim, diante da execração que se seguiu, Bernardinho teve que pedir desculpas em público.
Desconfio que hoje o prefeito da piada do início do artigo não seria ridicularizado: talvez fosse até reeleito. Seu único erro foi estar à frente do seu tempo, ao afirmar o poder das pessoas de ignorar a realidade, impor suas opiniões e satisfazer suas vontades pessoais por decreto.