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No Brasil de “Minority Report”, a Nova Lei já está em vigor
| Foto: Divulgação

Fiquei de concluir o artigo sobre Jason Miller, o cidadão americano que foi detido por quatro horas pela Polícia Federal, no Aeroporto de Brasília, na última terça-feira. O episódio, que já tinha sido ofuscado pela repercussão das dimensões das manifestações do Sete de Setembro (e pelos discursos inflamados de Bolsonaro), ficou definitivamente “velho” diante da repercussão da nota de recuo divulgada ontem pelo presidente. Mas merece ficar registrado, antes de mudarmos de assunto.

Segundo o ex-conselheiro do ex-presidente Donald Trump, o incidente demonstra que a liberdade de expressão está em risco no Brasil: “Eu acho que o objetivo disso era puramente político, (...) porque eu sou alguém que apoia a liberdade de expressão”, Miller declarou em entrevista ao programa “Os Pingos nos Is”. “Acho que o objetivo era me assustar”.

A detenção de Miller teve aspectos que seriam cômicos se não fossem trágicos. A começar pelo fato de que os policiais que abordaram Miller e sua equipe não falavam inglês. Eles precisaram da ajuda improvisada de uma funcionária do aeroporto que se ofereceu como intérprete.  Sempre se dá um jeitinho. Além do mais Miller não estava sendo acusado de nada, os policiais só queriam conversar.

Somando as penas previstas para todas essas violações, Miller saiu no lucro, porque já poderia passar uns 50 anos na prisão. Deveria ter voltado para os Estados Unidos, no mínimo, com uma tornozeleira eletrônica

“Assim que a Polícia Federal se aproximou da minha equipe, composta de quatro pessoas, nos foi informado que apenas dois de nós estavam autorizados a embarcar. Nenhum dos policiais designados para nos interrogar falava inglês”, relatou Miller, que prosseguiu: “Quando estávamos na sala de interrogatório, sendo interrogados pela Polícia Federal, os agentes mostraram uma ordem expressa de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Pelo que entendemos, tratava-se de uma investigação secreta, e não tínhamos o direito de saber os motivos de estarmos sendo investigados. Eu disse que não estava entendendo o que estava acontecendo, e os policiais responderam: ‘Se assinarem este papel, poderão seguir a viagem’. Questionamos, então: ‘Como vamos assinar um papel que não sabemos o que está escrito? Não há um tradutor oficial, não sabemos que processo é este...”.

É este o nível. Mas vamos às violações informais da Nova Lei, que já vigora no Brasil de “Minority Report”, cometidas por Jason Miller.

  1. Miller foi estrategista de comunicação de Donald Trump. Segundo a Nova Lei, qualquer associação com o fascista Trump é crime inafiançável;
  2. Miller teve a ousadia de criar uma rede social, a Gettr, que está roubando usuários do Facebook. Outro crime inafiançável: em uma democracia, só há espaço para uma rede social, se não vira bagunça;
  3. Além de ter como público-alvo internautas conservadores e/ou de direita, a Gettr não se arroga o poder de determinar o que é verdade e o que é fake news. Onde já se viu? A Gettr não sabe que verdade é aquilo que o Facebook diz que é verdade? A Gettr não sabe que, pela Nova Lei, fascistas que se vestem de verde e amarelo e realizam manifestações ordeiras e sem vandalismo estão proibidos de se manifestar em redes sociais?
  4. A Gettr não é uma rede social “do bem”, isto é, ela não exclui postagens nem cancela contas de usuários que não se enquadrem no pensamento único da Nova Lei. Inadmissível;
  5. Miller veio ao Brasil para participar da Conferência da Ação Política Conservadora, da qual faz parte o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente. Mais crimes inafiançáveis em série. Em uma verdadeira democracia, os conservadores não têm o direito de se manifestar: eles só têm o direito (para citar a letra de um funk que exalta e empodera as mulheres) de ficar caladinhos. Além disso, qualquer evento associado a qualquer membro da família do presidente está enquadrado pela Nova Lei como formação de quadrilha;
  6. Acreditem: Miller se reuniu com o presidente em Brasília, no Palácio da Alvorada, e ainda teve o displante de publicar fotos! Só por isso já estaria sujeito a uma prisão preventiva, porque eles poderiam estar tramando alguma coisa na tal reunião e, segundo a Nova Lei, é melhor “evitar que o cão morda”. Na dúvida, é prudente mandar policiais deterem o meliante para interrogatório, mesmo que os policiais não saibam falar inglês;
  7. Miller se recusou a assinar um documento cujo conteúdo ele ignorava (porque estava escrito em português), o que em uma democracia equivale a resistir à polícia e desafiar a Constituição. Segundo a Nova Lei, qualquer indivíduo é obrigado a assinar documentos entregues por policiais, mesmo ignorando seu conteúdo. E qualquer indivíduo pode ser detido e interrogado sem saber por quê, já que se trata de uma investigação secreta. Porque somente assim as instituições serão fortalecidas, e o Estado terá condições de zelar pela democracia e pelo bem-estar da população;
  8. Por fim, Miller é um conservador. Como todo mundo sabe, não existe espaço para conservadores em uma verdadeira democracia.   

Somando as penas previstas para todas essas violações, Miller saiu no lucro, porque já poderia passar uns 50 anos na prisão. Deveria ter voltado para os Estados Unidos, no mínimo, com uma tornozeleira eletrônica. Se eu fosse ele, jamais voltaria ao Brasil. Opa! Será que o objetivo da detenção era esse? Evitar que fascistas voltem a visitar o país? Como é sábia a Nova Lei.

A Nova Lei não está escrita nem publicada em lugar nenhum. Mas ela já está em vigor no Brasil – e vem sendo ardorosamente apoiada e cumprida à risca por muita gente, inclusive por jornalistas defensores da democracia e autoridades que ocupam elevados cargos na estrutura do poder.

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