“Eu sou democrata porque acredito que nenhum homem ou grupo de homens é bom o suficiente para lhe ser confiado poder absoluto sobre os outros. E, quanto mais altas as pretensões de tal poder, mais perigoso eu o considero, tanto para os governantes quanto para governados.”
A declaração acima, do escritor e pensador cristão irlandês C.S.Lewis, autor da série de livros As Crônicas de Nárnia, merece reflexão. Vivemos uma época na qual, justamente, um homem ou um grupo de homens se sente autorizado a impor sua vontade e exercer um poder absoluto sobre a sociedade. Nada menos democrático.
Nárnia é uma série de livros de fantasia, escrita para um público infanto-juvenil. No Reino de Nárnia, a magia faz parte do cotidiano, os animais falam, e um grande e poderoso leão, com justiça e sabedoria, ajuda quatro crianças a derrotar uma feiticeira e devolver a harmonia ao Reino.
Como um mundo de ficção, Nárnia pode não ser uma democracia – embora não por ter um rei, já que o Reino Unido, como o próprio nome indica, tem um rei e é uma democracia.
Em Nárnia, o Partido da Feiticeira pode ser perseguido e banido, e seus eleitores censurados, já que o Partido do Leão não tem compromisso com a diferença de opinião nem com a liberdade de pensamento.
Em Nárnia, quem critica o Leão e quem votou na Feiticeira pode ser condenado e preso, e está tudo bem. Porque, em um mundo de fantasia, o bem e o mal estão claramente delimitados. Só um lado pode se manifestar.
Mas no mundo real não é assim: sob regras comuns e transparentes, isonomicamnete aplicadas, pessoas podem e devem conviver mesmo tendo valores e opiniões radicalmente divergentes, sem que umas representem o bem e outras representem o mal. A isto se chama democracia.
Nárnia não tem nada a ver com isso. Acho que em Nárnia nem eleição tem. Muito menos Poder Executivo, Legislativo e Judiciário.
Mas o Brasil não é Nárnia.
O Brasil não é um mundo de fantasia. É, supostamente, uma democracia, com três Poderes, onde diferentes precisam viver em harmonia e onde deveriam existir regras que impedissem leões e feiticeiras de decidir sozinhos o que é certo e errado, o que pode ou não pode ser dito, ou o que é bom e conveniente para a sociedade. Porque estas decisões afetam as vidas e as liberdades de milhões de pessoas reais, não de personagens de ficção.
É justamente porque nenhum homem ou grupo de homens é bom o suficiente para tomar esse tipo de decisão que o sistema democrático, com sua previsão de alternância no poder, sua divisão de Poderes e seus mecanismos de freios e contrapesos, se consolidou ao longo dos séculos como o mais adequado para garantir aos indivíduos as liberdades e as condições necessárias para que possam viver e prosperar em um ambiente de paz e justiça.
Todos, independentemente de partido, são homens falhos que inevitavelmente falharão. E até mesmo os que se escondem por trás da defesa da democracia podem estar usando a democracia como desculpa para fazer o mal.
Profundamente cristão, C.S.Lewis acreditava que o poder – qualquer forma de poder, dos governantes sobre os governados, dos pais sobre os filhos e até mesmo do homem sobre a natureza – só é legítimo quando exercido com humildade e sob a autoridade de Deus. Porque homens não são deuses. Homens erram.
Por isso, sempre segundo Lewis, as respostas para as questões políticas devem estar alicerçadas na prudência, na modéstia, no conhecimento e nas experiências compartilhadas e na vontade da maioria, não na opinião de um ou de poucos.
Porque os homens, isoladamente, são imperfeitos e podem ser perversos, e quanto mais poder detiverem mais imperfeitos e perversos tenderão a ser.
A democracia é, nesse sentido, a “nossa única defesa contra a crueldade do outro”. Ao compartilhar o poder entre muitos, cada um respeitando o seu quadrado, a democracia, por imperfeita que seja, é o melhor remédio contra os abusos de um ou de poucos: “Nenhum homem pode ser confiável se tiver poder irrestrito sobre seus companheiros”, afirma o autor das "Crônicas de Nárnia".
Curiosamente, para Lewis a força da democracia não está na ideia de que a voz do povo é infalível. Ao contrário, é porque os indivíduos erram, inclusive coletivamente, que não se podem confiar as grandes decisões para apenas uma pessoa ou grupo. Quanto mais distribuído o poder, menor a probabilidade de se cometerem injustiças. É por isso que as democracias são superiores às ditaduras e aos regimes totalitários.
Em seu ensaio Cristianismo puro e simples, Lewis escreve:
“É possível ser democrata por dois motivos opostos. Você pode pensar que todos os homens são tão bons que merecem participar do governo, e tão sábios, que a comunidade necessita de seus conselhos. Em minha opinião, essa é a falsa e romântica doutrina da democracia. Por outro lado, você pode acreditar que os homens caídos são tão perversos, que nenhum deles pode receber poder desmedido sobre seus companheiros. Parece-me ser essa a verdadeira base da democracia.”
Já em Cartas de um diabo ao seu aprendiz, o escritor afirma:
“Todos, independentemente de partido, são homens falhos que inevitavelmente falharão. E até mesmo os que se escondem por trás da defesa da democracia podem estar usando a democracia como desculpa para fazer o mal”. [grifo meu]
Quando dotadas de poder e autoridade excessivos, pessoas assim podem se mostrar cruéis. Embriagadas de poder e vaidade e apoiadas exclusivamente em sua própria consciência distorcida e em convicções pessoais que de democráticas não têm nada, elas negam aos adversários "qualquer grão de bem ou verdade". Negam o direito à existência não apenas à crítica e à diferença de opinião, mas também à dúvida saudável e necessária em qualquer sociedade livre.
Por isso, segundo Lewis, as qualidades que devemos buscar nos governantes são “humanidade, integridade financeira, boa administração e trabalho duro”: “Políticos [e juízes, eu acrescentaria] com uma pretensão transcendental ou mesmo com um discurso fortemente ético são muito perigosos, pois estes traços são difíceis de diagnosticar e podem ser facilmente simulados”.
Para concluir, outra citação de C.S.Lewis:
“Eu sou um democrata porque acredito na Queda do homem. Eu penso que a maioria das pessoas é democrata pela razão oposta. Uma grande parte do entusiasmo democrático descende de ideias de pessoas como Rousseau, que acreditavam na democracia porque pensavam que a humanidade é tão sábia e boa que todos mereceriam participar do governo. (...)
"A verdadeira razão para a democracia é justamente o reverso. A humanidade é tão caída que a ninguém pode ser confiado poder incontido sobre seus companheiros. Aristóteles disse que algumas pessoas só prestavam para ser escravos. Não o contradigo. Porém, rejeito a escravidão porque não vejo nenhum homem que preste para ser senhor”.